domingo, 31 de outubro de 2010




"Adoniran é o homem da São Paulo entre duas guerras, se prolongando na que surgiu como jiboia fuliginosa dos vales e morros para devorá-la.
Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante de sua ativoz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade."
(Antônio Cândido)


Acima, caricatura de Noel Rosa, cronista da poética modernista do Rio em samba, em encontro com Adoniran Barbosa, espécie de "equivalente" modernista do primeiro em São Paulo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010






Talvez a última turnê de Paul McCartney no Brasil e no Mundo já apresentou, em tempo recorde, seus ingressos esgotados em São Paulo. Provavelmente também no Rio Grande do Sul.
Da primeira vez que o ex-beatle veio ao Brasil bateu o recorde mundial de público no Maracanã, aquele estádio idealizado e projetado por Ary Barroso para melhor valorizar o “futebol arte” dessa, e nessa terra.

Dessa feita, o músico inglês conta com uma banda melhor do que da primeira visita, ou seja, com alguns dos melhores instrumentistas que já lhe acompanharam desde o fim dos Beatles.

O repertório está mais diversificado: Venus and Mars/Rock Show (do disco Venus and Mars, de 1975), Ram On (do excelente Ram,1971), Ms. Vanderbilt, Bluebird (do mais conhecido Band On The Run, de 1974), Here Today( do grande Tug of War, 1982), além de músicas de seus dois últimos discos, de seu projeto alternativo eletrônico(The Fireman), cover de Hendrix, entre outras, são algumas das promessas.

Do repertório dos Beatles consta como principais possibilidades, dentro do que não era habitualmente executado pelo artista: I ´m Looking Through you( do primoroso e encantador Rubber Soul), Day Tripper( single), The Night Before ( Help), A Day in the Life( obra-prima do lendário Srg. Pepper´s), são algumas das que me lembro.

Contudo, o Bradesco, tendo ficado responsável por esses shows, só fez bobagem. Concedeu uma cota de exclusividade na compra dos ingressos para seus clientes e, com isso, pouca coisa sobrou para os muitos fãs- palavra chata- e admiradores da obra de Paul e dos Beatles. Ou seja, um monopólio dos mais descarados impediu que essa possível última vinda de um dos principais artistas populares do século XX se revelasse um evento mais democrático e sem traumas.

O sistema de concessões estilo capitanias hereditárias é uma prática comum no país desde Portugal. Foi assim também com a Rede Globo, cedida de braços abertos ao magnata da família Marinho. A ditadura que vigorou no país entre os anos 60 até parte dos 80 contou com apoio da rede do amigo de ACM.

Mas, se formos fazer um histórico de tal sistema feudal e monárquico no país não sairíamos dessa postagem.

Com os meios de comunicação, desde revistas como Veja e parte considerável de tvs e jornais enraizados nesse mesmo clima desde muito tempo, a história do provável último show de Paul McCartney no Brasil deixará mais um emblema de um país monopolizado por rudes “patrícios”. (Para quem crê em democracia por aqui com o advento das Diretas...).

Para esse evento, “patrícios, maurícios e “patricinhas feudais” deixaram uma oportunidade para que nossos cadáveres históricos e políticos sejam, por uma vez mais, examinados de frente.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Música Sacra ou Secular






“A música na igreja é um dos temas mais debatidos e acalorados por séculos. O músico e artista como profissional também é assunto em terreno arenoso e reticente.”

Por um lado, nota-se um grande preconceito, primeiro com os músicos em geral na sociedade brasileira. Como se essa não fosse uma profissão “séria”.

Quanto às igrejas, muitos de seus “músicos” têm lucrado maciçamente com a nova onda gospel, aproveitada tanto por católicos quanto por protestantes. Mas, músicos de igreja, por vezes, veem “outras manifestações sonoras” - as chamadas músicas seculares - com olhos não muito bons. E o pecado pode estar também no olho de quem vê, tal como no ouvido de quem escuta.

Ninguém é obrigado a achar uma maravilha a "Égua Pocotó", muitos sertanejos universitários (o termo, aliás, combina?), ou os Festivais do Pulo Axé.

Cláudia Leite canta muito bem, assim como Ivete, como já provaram em homenagens a outros compositores. Mas o Brasil precisa pular e muito, independente de quais sejam seus arranjos, texturas, harmonias, melodias,... Enfim, de qual seja a “música”.

Quanto à relação música e igreja, percebe-se em muitos uma ausência de formação teológica mesmo. Se o leitor não se interessar por ela, quem se encontra em uma igreja, ao menos deveria. Dentro de uma perspectiva de criação, a criatividade de um Deus teria gerado um universo e, portanto, o dom criativo do homem seria reflexo desse criador. Como diz Nelson Bomilcar, “a arte, historicamente, em suas manifestações iniciais, retratava a intenção do homem em direcionar suas expressões criativas a um divino. O homem procurava, no que fazia artisticamente, retratar o belo, suas formas e significados, inclusive por que se sentia parte de uma criação".
A visão da dicotomia da vida reflete uma teologia que foi ganhando espaço com o tempo, isto é, de que existiam duas vidas para serem vividas, uma santa e outra secular, uma carnal ou espiritual. Segundo Bomilcar, a vida integrada com um Criador seria a de seres em mente, coração e corpo, num sentido integral.

Ninguém é obrigado a endossar uma teologia, mas é uma introdução para tentarmos captar um pouco desse complexo música nas igrejas, a partir de um histórico de seus ancestrais fundadores.

Segundo Franky Schaeffer, no livro “Viciados em Mediocridade”, " a arte, por si só, não precisa de explicação, pois é fundamentalmente criação do criador.”

A mãe de Bomilcar, cristã devota e musicista, costumava dizer, e com bastante humor: “ Ora, toda música é secular, dentro e fora da igreja, pois toda ela foi criada e executada em algum século.”

Segundo seu filho, “ela ficava às vezes surpresa pelos cristãos desconhecerem que, em parte dos hinários considerados sacros, existiam músicas que não foram feitas com objetivo religioso, mas que eram expressões populares de sua época. Castelo Forte, hino da Reforma, é um desses exemplos. E muitas foram feitas apenas como expressão criativa dos homens, sem objetivo definido. Na realidade, o critério acabava sendo se as músicas eram boas ou ruins, a partir das observações de seus primeiros ouvintes, que eram críticos.

“A igreja (instituição ou institucional), principalmente na Idade Média, tentou manipular, controlar sem escrúpulos, entre outras coisas, qualquer manifestação do mundo das artes. Era ela que atribuía valor às obras consideradas de arte ou de arte sacra, usadas com fins nem sempre artísticos ou religiosos”. A história nos fala desses outros fins.

“ Essa dicotomia de vida espiritual e carnal, fez e faz muitos estragos para uma visão “mais saudável”, ou seja, não terrorista, daquilo que foi criado por Deus. Francis Schaeffer nos chamou atenção em seu livro "O Deus que intervém”, para o quanto o evangelho influenciou e influencia o mundo das artes na história da humanidade.”

Há muita ignorância teológica sobre isso. Entende-se, algumas vezes, que o músico ou o artista em geral vive num planeta à parte, sujeito a algo bem distinto de outros profissionais. O que nos remete aos excessos de Platão, cujo pensamento foi consideravelmente aproveitado pela Igreja Católica na Idade Média.

“Infelizmente, artistas e músicos foram e são marginalizados muita das vezes em sua atuação. Essa realidade foi um pouco atenuada fora do país, por causa de uma mentalidade mais aberta e por se valorizar a arte também como base de educação de um povo.” Lembremos dos clichês: “músico é arruaceiro”,” um vagabundo bon vivant” por trabalhar à noite”, e coisas afins.

“Barreiras para se trilhar esse caminho (com alguma dignidade,inclusive artística)”:

1-Familiar: quando os pais se assustam com a opção dos filhos se tornarem profissionais, já que em nossa cultura isso não é valorizado.
2-Barreira educacional, já que o ensino de música não é obrigatório nas escolas.”
Com a nova lei federal algo pode mudar.

Sem falar na própria barreira profissional. Em um sistema atolado nos jabás de gravadoras(via rádios e tvs), ou seja, na picaretagem, as oportunidades para um “artista-de facto” não são muitas.

E, em muitos segmentos, a demonização, na linhagem de Platão(que, aliás, nem conheceu a Cristo), sob o pretexto cristão, de todo um universo artístico, em que os conceitos se tornam confusos, sob pretexto de simplicidade.

Por outro lado, há a exploração irrestrita de gêneros que em princípio apontam expressões e potencialidades que terminam por naufragar, por obra dos vampiros dos nichos mercadológicos.
O rap, com isso, torna-se a um tempo estigmatizado ou idolatrado, a depender do público. Claro que o melhor do rap não comparece na grande mídia. Somente sua vampiresca distorção, quando passa da expressão de “identidade” de quem o criou ou recriou, para o espaço espinhoso de uma cultura massificada. Apropriado pela indústria fonográfica como forma de desviar seus “princípios, meios ou fins”. Ou melhor, suas expressões em jogo, num esforço e reforço contínuo de anulação artística e pessoal em nome do curto prazo da usura. Tal como foi feito com o rock, após o boom do estilo nos anos 60.

Segundo Marcuse, teórico da contracultura, a estratégia foi neutralizar o imaginário na arte, e, com isso, o feitiço se voltar contra o feiticeiro. A sexualidade e seu imaginário que, entre outras, poderia libertar algo, torna-se, em um dado momento, escravista coisificação do corpo, como embotamento da mente, por obra e graça de um mercado espertinho.

Mas, voltando um pouco, e se me permitem: um bom pesquisador encontrará belas expressões na maioria dos estilos, mas normalmente muitos se acomodarão à crítica fácil. O que não deixa de ser muito diferente de quem ouve o hit de um artista, não gosta e se empenha em generalizar o trabalho, sem se dar ao trabalho, ou ao empenho mais digno de, ao menos, pesquisar e procurar, por si mesmo(mas não só) conhecer um pouco mais dessa obra. O que pode ocorrer com os mais diversos estilos, de rap a rock, passando pelo samba, jazz, gospel, soul e cia.

No próximo tópico retomamos, inclusive com os fios soltos deixados nesses fragmentos de blog, sobretudo no que diz respeito à relação música sacra e secular.

terça-feira, 19 de outubro de 2010











“Passei parte do mês de julho do décimo sétimo Concurso Internacional J.S. Bach, organizado pela Bach Arquive, que se realiza a cada quatro anos em Leipzig, na Alemanha. Essa instituição fantástica promove dezenas de eventos da mais alta qualidade todos os anos.
Evidentemente, me sinto honrado de pela segunda vez estar no júri, pois nestes últimos 50 anos sempre me dediquei como pianista, e agora como maestro, para ter um brasileiro na história dos intérpretes de Bach.
O início da competição coincidiu com a última semana da Copa do Mundo.
Quando você é informado da importância da música em vários países asiáticos, ocupando já o primeiro lugar na inclusão social, acima do esporte, e diminuindo a criminalidade em regiões carentes, a missão de um músico deve ultrapassar as salas de concerto, sem abandoná-las, e atingir as periferias das cidades, que raríssimas vezes têm a oportunidade de conviver com esse maravilhoso universo.

Ao final da competição, conversei com vários candidatos, 40 % deles asiáticos, muitos de famílias pobres.
No avião de volta, comecei a refletir e a pensar novamente na Copa do Mundo, em que nossos jogadores, tratados como semideuses, estavam mais preocupados com seus contratos internacionais.
Ao mesmo tempo, numa volta ao passado, fui me lembrando de vários músicos brasileiros que levaram tantas vezes, por ideais, o nome de nosso país ao exterior.

Felizmente, soube que no âmbito federal iniciou-se um embrião de projeto musical para o qual voluntariamente dei alguns palpites, afinal, já fiz 70 anos. Ao que tudo indica, o projeto terá três objetivos: formar profissionais que certamente terão espaço para exercer seu ofício; dar oportunidade para jovens terem a música como instrumento de convívio; e, finalmente, a formação de novos públicos.

Somente democratizando a cultura em todas as regiões atingiremos metas que poderão nos dar orgulho. Projetos como a Sinfônica de Heliópolis e os Meninos do Morumbi podem mudar a realidade de toda uma comunidade. Da nossa parte, nós, os músicos da Bachiana Filarmônica Sesi-SP, corremos os Céus da Prefeitura de São Paulo, unidades da Fundação Casa e pequenas cidades do interior de São Paulo, Minas e Espírito Santo, onde educamos cerca de mil crianças e jovens...”
(Trecho de texto de João Carlos Martins, regente da Bachiana Filarmônica)

“A ausência de informação sobre a área musical está relacionada à sua exclusão do currículo escolar, ou por ser trabalhada de forma superficial.
Entretanto, espera-se que cada vez mais se promovam aprendizagens significativas, especialmente com o surgimento da lei 11.769, que inclui o ensino da música no currículo escolar”.
(Patrícia Kebach, doutora e mestre em educação pela UFRGS, onde realizou pesquisas sobre a construção do conhecimento musical
Seu e-mail: patriciakebach@yahoo.com.br).

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Abortando discussões

" Uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja.
As pessoas precisam ser " a favor" ou "contra". Ninguém argumenta. Cada um apenas reafirma abstratamente sua identificação.
Com isso, inevitavelmente essas discussões monosprezam, atropelam e violentam a vida concreta de todos."
(Contargo Caligaris)

No calor das eleições, há os fundamentalismos prós e contras.
Dos contras, já se foi muito falado.

Dos prós, a atitude é semelhante, seja citando "argumentos de autoridade", tipo: "Fulano já falou", "o país (pretensamente mais avançado) já fez",...
Um país pretensamente mais avançado não quer dizer que o seja, necessariamente, em tudo. Se não nele(s) não haveria, por exemplo, xenofobia acirrada, entre outras. Nesse caso, seriam os países da Europa? E nosso olhar permanece contaminado por um dogma de eurocentrismo.

Não dá para desqualificar o "outro lado" com argumentos igualmente autoritários. É o que trava o debate, com as respostas chegando prontas de ambos os lados. Como se as vidas, em suas particularidades, pudessem ser tratadas como receitas de bolo.

Trocar uma receita por outra é negar a política em seu dever de saber prolongar e mediar conflitos. Por isso, o comentário de Caligaris me parece ser, no momento, o mais apropriado.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Notas de(ops,sobre) Allen- Bate Papo






Enquanto em Sampa passa uma mostra sobre John Ford, e por aqui alguns filmes dublados, fico-ou vou- a dar uma passeada por blogs de cinema.
O chiphazard, do Sergio Alpendre abarca uma bela cotação de filmes do Woody Allen. Embora não concorde tanto com as dos últimos, no geral é fácil gostar de uma cotação que acaba coincidindo com a nossa. Foi o que, em geral, ocorreu.

Da primeira fase do diretor - mais anárquica, menos intelectualista, e mais despreocupada com o formato - fico com Dorminhoco e Bananas.

Viria posteriormente uma virada com Annie Hall - ou Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, no Brasil-, em que o diretor retoma elementos das comédias dos anos 30/40 de Hollywood, tanto na verborragia quanto no senso apurado das imagens(o que ainda não estava contido com força em filmes anteriores). Mas passado por um sopro de nouvelle-vague(a nova onda francesa perpretada por Godard, Rohmer, entre outros) em sua sede de flagrar ou experimentar, com leves equipamentos, um mundo.
Em Annie Hall, Allen consegue tratar com desenvoltura ímpar assuntos de densidade certa, como relacionamentos fracassados. Mas até mesmo pelo título, trata-se de uma homenagem, até certo ponto suave, à sua ex Diane Keaton, também protagonista na obra.

Muito tempo após, o ator-diretor retoma semelhante estado de espírito em Um Assassinato Misterioso em Manhattan, filme que parecia, por uma vez mais, renovar sua carreira e contando com a mesma Keaton.O tema aqui também é árduo. Trata-se da crise de um casal que, para compensá-la, passa a se envolver com os vizinhos do prédio. A suspeita de um crime recai sobre os últimos, mas o filme sugere, com sutileza e algumas indicações um pouco mais claras, que tamanho movimento de Allen e Keaton seria, em grande parte, uma maneira de escapar ao tédio de suas vidas. Tentativa de recuperação de algum fôlego em casamento falido(ou em vias de...).
O sentido de suspeição não se encontraria,portanto, somente nos vizinhos. Mas,tal como em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa é como se tudo fosse leve, passando quase despercebido, como reconquista de "fôlego de cinema" para o diretor. O Assassinato Misterioso em Manhattan poderia ser uma espécie de John Cassavetes- diretor independente- com sinal trocado, em que a graça e o estranhamento dão suas cartas. Texto e subtexto implacáveis em condução de cool, suave aparência.

Após Noivo Neurótico..., o diretor emplacaria um dos seus destaques, Manhattan. Se existe ainda quem o considere pretensioso, o desfecho aposta em um tipo de simplicidade de que só os melhores musicais dariam conta. A trilha de Gershwin e o refinamento das imagens não soam pomposos, até mesmo pelo fato do artista saber rir de si. Nesse sentido, o final, a um tempo romântico e problematizante, opera como um bela aplicação de tapa de luva em si mesmo. Talvez sua obra-prima.

Já chegando perto do desfecho da obra Hannah e suas irmãs, a ex-fã de punk rock reencontra seu antigo desafeto- o próprio Allen - em uma loja de discos. Ao se movimentar no recinto, achega-se aos poucos ao ator, por intermédio do setor de discos de jazz. É como se, de uma hora para outra, a moça pudesse ter mudado de gosto, já que a velha briga do “casal” havia girado em torno de uma gostar de “rock barulhento” - nas palavras do protagonista-, enquanto o outro seria admirador confesso de jazz. Ao compararmos com o desfecho de Manhattan, o diretor faz o oposto. Submete a moça a seus gostos, acaricia seu ego nos termos de uma encenação, em que as palavras, em princípio, se ocupam de outras coisas. Mas a imagem, a direção opera como um imã a conduzir Dianne Weast até o protagonista – incluindo seus gostos.
Já o final instaura um tipo de ambigüidade, pois sabíamos, até então, pela obra, que o personagem de Allen era estéril, enquanto a moça, repentinamente, revela em uma festa de família estar grávida desse homem. Ambos recém casados. Haverá uma pausa dúbia na direção de atores, antes da reação de aparência positiva, verbalizada de Allen à notícia. Isso em luz baixa, sem que possamos ver com clareza as expressões implicadas.

Outros filmes de destaque são Broadway Denny Rose, - não tão bom quanto os anteriores citados-, mas apresentando raro frescor e sincero prazer na direção, embora pareça começar melhor do que em seu desenrolar para o final.

Maridos e Esposas é dos bons, como um desses trabalhos em que a câmera tremida consegue não estragar a obra, intercalando com planos estáticos momentos confessionais.Há certo tom do sueco Ingmar Bergman e novamente John Cassavetes, nuançados pelo humor do diretor. E pelo lúdico na cena em que há um blackout em uma festa de família e o protagonista consegue, enfim, beijar a protagonista. A câmera, ao chegar tão próximo à moça, capta seus desejos e hesitações em poros de pele. Parece impossível que pedisse outra coisa.São segundos no filme em que a fugacidade constitui a graça.

Volto um pouco ao mais conhecido A Rosa Púrpura do Cairo, superestimado em certos grupos, como subestimado em outros. Mesmo não sendo obra-prima, prefiro estar mais para o lado dos primeiros, com um tipo de generosidade sintonizada com o estado de espírito proposto. A licença poética novamente-, ainda que um tanto quanto dolorosa.

Como são muitos os filmes, destacaria ainda, além de Zelig, O Escorpião de Jade, por sua aparente modéstia e contínua invenção e reinvenção do humor, por saber explorar o espaço de investigação, alternado às espeluncas da vida privada.O diretor faz o que talvez seja o seu melhor. A partir da filtragem do repertório de certo cinema dito clássico, seja das comédias dos anos 30/40, passando por Groucho Marx, recria um tipo de cinema em tom de aparente despretensão, mas com forte sentido do lúdico e do nonsense, bem dosados. A saber, sem o comprometimento da lucidez nas revisitações, pela forma sóbria de enquadrar e narrar com arejado frescor.

Por ora, finalizo o papo das visitações com as provocações de Bruno Andrade (no blog Signododragao), com as quais concordaria, em parte, antes mesmo do pronunciamento do mesmo.
“Os Fracos não têm vez”, dos irmãos Cohen, que a meu ver, desde a primeira sessão,não teve tanta vez.
Superestimado,embora afetado em seus tiques de suposta inteligência e cinismo. O espectador não parece respeitado, como se os Cohen fossem uma exceção, uma “originalidade” à parte no cinema. É ao menos o querem provar, junto à falta de um real vínculo com o cinema,substituindo-o por um suspeito “cinema de arte”, em dadaísmo pedante.
O segundo caso diz respeito a outro trabalho supostamente superestimado em certos meios. Apesar de uma aparente boa condução e bonita filmagem, Bastardos Inglórias talvez peque justamente pela presença de ambas.
Com alguns bons momentos, revela-se, contudo, como mais envernizado do que o habitual em Tarantino. Como também mais autoindulgente em seu aspecto de obra “bem encaixada”- de pretensa “obra-prima”-, na opinião do próprio Tarantino ao declarar em entrevistas e no próprio desfecho do filme ter, enfim, fabricado a sua. Fabricação é a melhor palavra.

Mas discordo, Bruno, no tocante à Sidney Lumet, que em seus bons momentos consegue uma belo intercâmbio entre cinema e tv, o que passa por outros questionamentos e levantamentos sobre representações da imagem ao longo dos tempos.
Nesses casos,um registro que não comprometa o outro, ou outros. Em bons trabalhos,Lumet enriquece com particularidades o/seu cinema, com um poder de síntese que seria mais que reducionismo ou mero artesanato. Em certos casos, teatro, cinema e tv podem se imbricar muito bem.

“Vortemos dispois”, em outra oportunidade.


Ps.Ainda não assisti ao último trabalho de W.Allen.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Drummond,Lado B





O arabesco em forma de mulher
balança folhas tenras no alvo
da pele.
Transverte coxas em ritmos,
Joelhos em tulipas. E dança
repousando. Agora se inclina
Em túrgidas, promitentes colinas.

Todo se deita: é uma terra
semeada de minérios redondos,
braceletes, anéis multiplicados,
bandolins de doces nádegas cantantes.

Onde finda o movimento, nasce
espontânea a parábola,
e um círculo, um seio, uma enseada
fazem fluir ininterruptamente,
a modulação da linha.

De cinco, dez sentidos, infla-se
o arabesco, maçã
polida no orvalho
de corpos a enlaçar-se e desatar-se
em curva curva curva bem-amada,
e o que o corpo inventa é coisa alada.

domingo, 3 de outubro de 2010

Qualidade de vida e Reprodução do consenso - Parte final




A qualidade de vida é uma noção contemporânea que sintetiza ideais que emergiram a partir do terço final do século 19.É nessa época, arcada por progresso científico, avanço industrial e crescente urbanização, que surgiram temores sobre o que os saberes biológicos consideravam riscos degenerativos.

Em sua análise, o professor Richard Miskolci destaca que foi a partir da década de 1880 que surgiu um conjunto de saberes e práticas sociais conhecidas pelo termo “eugenia”, palavra que vem do grego eu (bem) mais genos(nascido), ou seja, um verdadeiro dispositivo normalizador voltado para o controle da população. Para Miskoci, “a eugenia sintetizava interesses imperiais e colonialistas, criando processos de identificação (projeção), discriminação e até extermínio daqueles que considerava “disgênicos”, anormais, degenerados. Assim, processos de racialização, sexualização e subordinação política se uniram de forma a alçar como modelares os homens brancos colonizadores, os quais não titubearam em implementar formas de dominação da população de deus países e,ainda mais, dos povos que subordinavam por meio da colonização na África, Ásia ou América.”

De forma geral, esse tipo de pensamento ainda hoje não foi totalmente superado, as conseqüências dessas teorias e práticas foram além dos campos de concentração criados primeiramente como prática colonial na África do Sul e, durante o nazismo, transplantados para o centro do continente europeu.

“A eugenia não foi jogada no cesto de lixo da ciência depois da revelação das atrocidades nazistas. Ela se renovou em vertentes de pesquisas com intuitos altamente questionáveis, como os que buscam as causas supostamente biológicas de comportamentos socialmente perseguidos assim como se desenvolveu por meio de práticas de controle e transformação corporal e subjetiva.” Ainda hoje, esse processo de adequação funciona de maneira até mais eficiente. “Não por acaso este processo se dará não na Europa, cujas práticas eugênicas de extermínio levaram à catástrofe da Segunda Guerra, mas nos Estados Unidos, a primeira sociedade de consumo plenamente constituída”.

Nesse novo momento, fica evidente a gestão política e técnica do corpo e da sexualidade como questão central para a cultura. O sucesso de um estereotipado estilo de vida se firma no auge de um processo iniciado com a invenção da pílula anti-baby, baseada em estrógenos sintéticos, em 1946. No ano seguinte, os laboratórios Lily passam a comercializar, como analgésico, a molécula de metadona.

“Isso, por fim, atinge a todos, mas tem conseqüências ainda piores para grupos historicamente marginalizados, como gays, os quais têm na figura da “Barbie”, o homem musculoso, um ideal que busca enfrentar os estigmas que os associaram ao “efeminamento” e à fragilidade.”

A propaganda agressiva foi desenvolvida para manter a máquina funcionando. E a preocupação imperativa com a “qualidade de vida” caminha ao lado. Para o professor Richard Miskolci, foi em meio ao forte crescimento econômico do pós-Segunda Guerra e da crescente diversidade dos centros urbanos, que a classe-média branca norte-americana rumou para os subúrbios, para aqueles bairros residenciais em que buscavam reconstituir um ambiente homogêneo em termos étnicos e econômicos. Queriam sair do centro da cidade em que perambulavam mendigos, imigrantes, negros, homossexuais. Assim, buscavam se afastar dali de maneira a construir em outro lugar um “universo perfeito”.

Esse ideal difundido durante a Guerra Fria aderia a ideia de que qualquer indivíduo, independente das circunstâncias, poderia melhor a qualidade de sua vida no futuro por meio de determinação, trabalho duro e habilidade. Politicamente, o american way acredita na “superioridade” da democracia dita livre, fundada num mercado de trabalho competitivo sem limites, porém o termo “qualidade de vida” tem mais a ver com processos históricos e sociais de hierarquização e subordinação de mais pobres, não brancos, estrangeiros e não heterossexuais do que como busca de eliminação do estresse cotidiano.
“Mas não nos enganemos, o que se busca como “qualidade de vida” é distinção social, vida em meio mais homogêneo, “puro”, ou seja, por trás desse ideal supostamente saudável e positivo residem escolhas, práticas de exclusão e hierarquização”, adverte Moskolci.
Além do mais, o resultado de tal estilo de vida suburbano foi a criação da geração do conformismo, que desconhecia sua realidade social,cultural. A formação de jovens adestrados para o consumo e a reprodução de um “óbvio” aparente.

(Robson Rodrigues, Richard Miskolci e Alessandro Coimbra).