sexta-feira, 15 de junho de 2012

"Um cinema de contrastes", por Inácio Araujo






"A questão central do cinema de Carlos Reichenbach é encontrar o homogêneo no seio do heterogêneo. Suas personagens, no interior de um mesmo filme, são as mais diversas possíveis. Um professor cultíssimo e niilista namora uma operária especializada e batalhadora ("Amor, Palavra Prostituta"), uma garota negra é apaixonada por um branco nazista ("Garotas do ABC"), duas adolescentes deixam-se fascinar por um refugiado político ("Dois Córregos"). Etc. Estilisticamente, os filmes apresentam o mesmo tipo de contraste, podendo variar do drama existencial à chanchada no espaço de alguns fotogramas, para depois passar ao musical ou ao policial.


Essa operação não é simples, nem é raro o espectador ficar um tanto perplexo diante do que vê, sem saber ao certo se deve rir ou não, porque Carlão não apenas transtorna a lei dos gêneros como também os hábitos de nossa percepção.

Ninguém deve sentir-se desconcertado diante disso – muitos especialistas já ficaram e não à toa que sua obra levou anos a ser descoberta. Chamo a atenção para ela, porque esse tipo de mise-en-scène me parece exprimir, no mais alto grau de inteligência cinematográfica, o Brasil, seus abismos sociais, seus contrastes gritantes, e, sobretudo, a principal característica deles, que é a contiguidade.


Nos filmes de Carlão Reichenbach, o bom e o mau gosto, o homem culto e o cafajeste rematado, o torturado existential e o vigarista são invariavelmente contiguos, não raro convivem no mesmo bairro ou rua. Pode-se dizer que isso não é raro em outras cinematografias. Vejamos um caso banal: homem rico encontra órfã, conversa com ela, convida-a para uma festa, faz amizade, começa a paquerá-la. Ou ainda: dramaturgo de sucesso na Broadway topa, incógnito, com garçonete com ambição a escritora, que despreza os sucessos da Broadway. Existe um evidente contraste entre esses personagens. No entanto, sabemos que fazem parte do mesmo mundo, que seu falar, seus rostos, seus hábitos de algum modo os identifica, os aproxima, na medida em que participam de um mesmo mundo.

Essa solidariedade que podemos encontrar na sociedade americana ou européia (onde a riqueza não implica necessariamente diferenças culturais acentuadas) está longe de existir nos filmes brasileiros, e me parece mesmo uma das razões por que o espectador custa a se identificar com eles. Ou não se identifica nunca, porque busca uma solidariedade que existe nas convenções cinematográficas, mas, no nosso caso, não se dá na vida cotidiana, em que vigora uma espécie de apartheid social. Daí, quando os personagens de Carlão dialogam, eles em geral falam em dois níveis distintos, de certa forma irredutíveis um ao outro, o que lhes dá uma aspereza particular."

Leio, releio e não vejo muito o que modificar ou acrescentar a esses parágrafos que abrem um dos artigos que escrevi para o livro "Ilha Deserta – Filmes", lançado pelo Publifolha há alguns anos. Vejo que às vezes as pessoas falam de um "problema" do cinema brasileiro, como se ele existisse à parte dos problemas do Brasil. Carlão é, felizmente, um pouco autista. Embora aspire falar ao público mais amplo possível, é incapaz de abrir mão de seu pensamento. Não se dobra à estética saída das novelas da Globo e que, se faz sucesso no cinema nacional de hoje, é porque se trata da única que o público local identifica como linguagem ficcional possível. Não é fácil fazer cinema no Brasil atual, no sentido em que fazer cinema não é gritar "roda", e sim pensar as imagens, seu destino. Reichenbach ainda faz."

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