terça-feira, 27 de março de 2012

Crônica dos chocolates




Variando um pouco o tom,  e já avisando  aos cinéfilos de plantão  que não se trata de um trabalho de crítica, nos moldes mais conhecidos.

Mas de uma crônica, a fim de intercalar um pouco as coisas.

 
O novo filme de Tim Burton, "A Fantástica Fábrica de Chocolate", é delicioso. Há chocolate para todo mundo: para as crianças, para os cinéfilos (hilárias citações de clássicos do cinema) e para os adultos que têm filhos.

A história é conhecida, pois o livro homônimo, de Roald Dahl, é um grande clássico da literatura infantil (ed. Martins Fontes). Willy Wonka vive recluso e solitário em sua fábrica. Um dia, ele decide abrir as portas de seu mundo achocolatado às cinco crianças que encontrarem um convite na embalagem de uma barra Wonka. Uma das cinco ganhará um prêmio especial; as outras, digamos assim, terão o que merecem. Detalhe: na verdade, contando Willy Wonka, as crianças são seis.


A idéia de um país de guloseimas, espécie de Pasárgada onde não conheceríamos frustração alguma, é antiga (vale a pena ler "Cocanha", de Hilário Franco Júnior, Ateliê Editorial). Todos ou quase todos, no mínimo, se lembram do país de Cocanha, onde Pinóquio passa cinco meses longe da presença chata dos adultos e de outros grilos falantes. Ao fim da estada, as orelhas de Pinóquio crescem e se tornam estranhamente peludas. As crianças de Cocanha se divertem à beça, mas são cruelmente punidas: transformam-se em burros.


Na língua portuguesa, "cocanha" é o pau-de-sebo, um mastro untado em cima do qual é colocado um prêmio: tente chegar ao cume, a gente dará risadas quando você aterrissar ruidosamente sobre seu bumbum. É a moral da aventura de Pinóquio em Cocanha: as crianças, quando chegam ao país de seus sonhos (sem adultos para mandar nelas), só fazem besteiras, tornam-se bestas.


E você se lembra de "Struwwelpeter", de Heinrich Hoffmann, com aqueles desenhos terrificantes? A criança que não come a sopa acaba morta e enterrada, a que chupa os dedos é mutilada a golpes de tesoura e por aí vai. Em "Struwwelpeter" não havia Cocanha, mas a idéia era a mesma: o horror espreita as crianças que não escutam pais e adultos.


Ora, a história de Dahl, contada admiravelmente por Tim Burton, é mais sutil. As crianças descontroladas acabam mal, com um certo requinte de crueldade (à la "Pinóquio" e à la "Struwwelpeter"), mas (aqui está a diferença) elas não vão sozinhas para Cocanha (para a fábrica): elas são acompanhadas pelo adulto que mais foi e é responsável por sua educação ou falta de educação.


Em suma, a história não contrapõe os apetites infantis à sabedoria dos grandes, que deveriam domá-los; ao contrário, na "Fábrica", os marmanjos mais insuportáveis são os dignos rebentos dos adultos que os acompanham. O filme funciona como um repertório das aberrações dos adultos em sua relação com as crianças.

Há o menino gordão, filho de uma mãe que decidiu dispensar ao filho uma infinita satisfação oral, do seio à barra de chocolate. Há a menina rica, cujo pai obedece a todos os caprichos da filha. São exemplos de pais preocupados não com o bem-estar dos filhos, mas com seu próprio prazer: quem não sabe dizer "não" goza com a ilusão de sua própria onipotência. "Consigo satisfazer sempre o desejo de meus filhos, produzo filhos sem faltas e sem falhas."


Há a menina que só sonha em deixar seu nome no livro dos recordes e cuja mãe quer uma filha campeã. Há o menino obcecado por videogames e outras tecnologias eletrônicas: as queixas do pai, que não entende a metade do que o filho diz, mal escondem a admiração pelo filho que sabe mais que os adultos. São exemplos em que amar os filhos significa apenas encarregá-los de realizar nossos sonhos frustrados.


Enfim, há o próprio Willy Wonka, cujo pai (não direi como para não estragar a surpresa) queria que o filho fosse a prova da excelência da arte paterna -um pouco como se pais psicanalistas quisessem criar filhos analisados desde nenês, isentos de conflitos e neuroses, monumentos comemorativos da "competência" dos pais.


Resta Charlie. Ele, aparentemente, foi criado da maneira certa. Como? Só duas explicações (o espectador encontrará outras): 1) entre os pais de Charlie vige uma solidariedade amorosa absoluta diante das adversidades, que não são poucas -assim é transmitida uma hierarquia de valores; 2) a família de Charlie inclui (imagem inesquecível) os quatro avós, que não param de falar, deitados numa mesma cama instalada no meio da casa -Charlie não é o porta-bandeira da frustração ou da obsessão de um genitor, ele é o resultado de uma história (polifônica), que lhe deixa a tarefa de ser "ele mesmo".


Sábado passado, num cinema paulistano, na sessão em que o filme é dublado (para as crianças entenderem), esgotaram-se os cadeirões que se encaixam nos assentos e impedem que os mais miúdos sejam engolidos pelas poltronas. Uma funcionária do cinema perguntou gentilmente a uma menina já de bom tamanho se ela poderia sentar como adulta e ceder seu cadeirão a uma criança bem menor. O pai da menina se indignou: "MINHA filha NÃO vai ceder seu cadeirão. O problema é de vocês, encontrem mais cadeirões" (fabriquem mais chocolate?)".


( Contardo Calligaris)


 
Ps do bloguista:

 Posteriormente podemos retomar o  filme, cuja cena de abertura de câmera em direção a visão da dita "Fábrica encantada"  recria a passagem entre mundos  presente em  "O Mágico de Oz".

Como também poderíamos  falar de como são  trabalhadas  as demais  citações cinematográficas e de TV,  via pastiche ou paródia.

E, sobretudo,  do estilo barroco do diretor (passado, é certo,  por um certo crivo mais clássico)-,  onde predominam formas mais encurvadas,  círculos e  reentrâncias. (....).


Um possível esclarecimento:  a recusa de Charlie em morar, de início, na fábrica não parece operar aqui como mera concessão hollywoodiana à ideia de família, mas acaba por revelar um subtexto social já característico do diretor.

 Deixar os avós- e turma-  implicaria ser indiferente a sua dor,  como também abandonar um mundo lúdico possível por outro,  de mero comércio provável.

quarta-feira, 21 de março de 2012

A Possibilidade da Ficção no Cinema- Da Dialética Crença e Descrença




Belo texto do Zé:



"Tim Burton embaralhou em seu filme personagens, ambientes e situações dos dois livros de Lewis Carroll protagonizados pela menina Alice: No país das maravilhas (1865) e Do outro lado do espelho (1871).
As perguntas que se impõem são: 1) por que ele fez isso? 2) como fez isso? 3) o que resultou disso?


Minha hipótese, que articularia, ainda que precariamente, as três questões, é a de que o cineasta quis dar um sentido crítico e contemporâneo às fabulações do escritor britânico e de que fez isso potencializando os procedimentos intelectuais e estéticos do próprio Lewis Carroll.



Deslocamento e condensação



Justificado pelo fato de que Carroll constrói seus livros como dois longos sonhos, Burton usa e abusa das operações de deslocamento e condensação que constituem a base da linguagem onírica.

 Se nos sonhos os elementos da "vida diurna" mudam de lugar e se fundem uns com os outros, o cineasta faz o mesmo com o próprio universo criado pelo escritor, saqueando e manipulando a seu bel-prazer os personagens e situações presentes nos dois livros - e incorporados de múltiplas maneiras ao imaginário ocidental no último século e meio.

Assim, por exemplo, estão no filme os soldados do exército de cartas (do primeiro livro), mas eles obedecem à rainha vermelha (do segundo livro), e não ao rei e à rainha de copas. Seria cansativo (sobretudo para o leitor) elencar aqui todos os lances desse tipo, e a bem da verdade eu não seria capaz de fazer isso, pois não sou profundo conhecedor da obra de Carroll.


Wonderland = Underland


Burton reforça em seu filme o espírito lúdico das obras originais, multiplicando em ritmo alucinante as tiradas de non-sense, os jogos internos, os trocadilhos verbais e visuais. 

Mais do que isso, enfatiza uma ideia apenas esboçada em Lewis Carroll (escritor pré-freudiano, é bom lembrar), a de que o país das maravilhas (wonderland) é, na verdade, o mundo subterrâneo (underland). Ou seja, o mundo da fantasia é o mundo do inconsciente, ou do subconsciente, daquilo que é soterrado pela consciência, pela vigília.

A Alice de Tim Burton, já adulta, mistura em suas lembranças eventos ocorridos na infância com retalhos de sonhos e pesadelos. No magma impreciso que forma a memória afetiva, as imagens e sons da vigília têm a mesma espessura, a mesma densidade, daqueles do sonho e da imaginação.

Assim como a Alice do filme, aos 19 anos, retorna ao País das Maravilhas, que ela acreditava existir apenas em seus sonhos, o filme atual revisita o universo de Lewis Carroll buscando atribuir um sentido, uma ordem possível, a sua miríade de elementos.


Um conto de emancipação


Todas as grandes mudanças introduzidas por Tim Burton nas histórias originais têm, a meu ver, um objetivo central: dar à saga de Alice um sentido de emancipação feminina. É por isso que no filme ela já é uma moça de 19 anos, no limiar da vida adulta, é por isso que ela é escalada como a guerreira da rainha branca para vencer com a espada o monstro Jabberwocky.

O prólogo e o epílogo, ambientados no "mundo real", ou seja, na superfície, ressaltam o sentido feminista-libertário do filme.

Pois logo de início a jovem Alice é confrontada com a sina que a espera: casar-se com um bom moço da nobreza e ser uma dama do lar. A fuga assutada a esse destino coincide com a queda no mundo subterrâneo, que por vias retorcidas vai ajudá-la a se conhecer e iluminar seu caminho no mundo.

No começo da história,  Alice é simplesmente uma moça inquieta, que não se encaixa no modelo social e comportamental reservado a ela na sociedade vitoriana (assim como a Alice dos livros era só uma menina curiosa e imaginativa). Seu signo é o do desajuste, da inadequação. É no wonderland/underland que ela vai aprender a transformar esse handicap em vantagem, a se metamorfosear de menina em mulher, assim como a Lagarta Azul se transmuta em borboleta - a última imagem do filme, voando em 3-D em direção à plateia.

Não é casual o fato de que a grande tarefa exigida de Alice - matar o monstro - é uma ação heroica eminentemente "masculina" na cultura tradicional. E ainda por cima com o uso da espada, símbolo fálico por excelência. A princípio com relutância, a moça acaba por concordar em "roubar" o papel que seria do homem, em ocupar o seu espaço. A propósito: chama a atenção a ausência dos reis, branco e vermelho. Onde estão os homens nesse país das maravilhas?


O novo homem?

É aí que entra o personagem complexo e intrigante do Chapeleiro Maluco. Muita gente criticou, com certa precipitação, o fato de o Chapeleiro ter adqurido no filme um destaque tão grande ou até maior que o da protagonista. Mas isso certamente tem uma razão que vai além do carisma de Johnny Depp e da sua profunda afinidade com o diretor Tim Burton.

O Chapeleiro composto por Depp é, de certo modo, o contraponto ideal, complementar, à Alice emancipada do filme, carecendo de alguns atributos convencionalmente atribuídos ao homem. É corajoso e solidário, mas não bruto, nem competitivo. Tem algo de feminino em sua doçura, em sua atenção à aparência. Em certos momentos, parece mais um cabeleireiro do que propriamente um chapeleiro. 

Acima de tudo, há nele uma admiração pela nova mulher maravilhosa, mesclada com uma certa perplexidade e uma indisfarçável melancolia.
Mas aqui talvez eu esteja projetando na tela de Carroll/Burton uma viagem pessoal minha. Hora de parar."

 ( José Geraldo Couto)

quinta-feira, 1 de março de 2012

A Nudez Teatral


No cinema de Jean Renoir e de Vincente Minnelli, o mundo social é abordado como uma grande "farsa".

Nada mais apropriado, portanto, do que a criação, por parte desses artistas, de um outro palco- descaradamente teatral-, a conviver e estabelecer trocas com o primeiro plano e a recriar a fachada do chamado " mundo real".


Tanto no cinema de Minnelli quanto no de Jean Renoir de "A Carruagem de Ouro", o teatro- esta "mentira" assumida-,  torna-se, como paradoxo, o espaço, por excelência, do despimento. É justo nesse novo palco que seus personagens poderão SER, contrariamente ao que  chamamos de mundo social.


Em "O Pirata", Judy Garland só se tornará mulher ao atravessar a cenografia teatral e cinematográfica proposta por Gene Kelly/Minnelli. Ali ela se descobrirá e se desdobrará,  agindo por si mesma.


No melodrama "Some Came Running", os papéis sociais, de tão rígidos, só poderão (re) conhecer seu despimento no exato instante em que o filme ganhar o frêmito de um musical. A encenação estilizada, portanto, é quem explicita o jogo dos papéis, permitindo, no fim das contas, alguma possibilidade de Visão.

É, então, que Dean Martin poderá retirar- literalmente- o chapéu para a mulher sacrificada-, e estereotipada na cidade como prostituta.