quarta-feira, 4 de abril de 2012

De Palma- Tópicos




 
Revendo "Um Tiro na Noite", de  Brian De Palma, veio-me à memória o fato do diretor ter sido sempre visto como suposto plagiador de  Alfred Hitchcock, ou  mero brincalhão formalista, de intenções e gosto duvidosos. 

   Não é bem o que se nota no filme em pauta. Haverá um momento em que estaríamos a rever a famosa cena do chuveiro de “Psicose”. 
Ela comparece como propositalmente mal feita, tão mal copiada, de maneira que certo tom jocoso se imponha logo de cara. 



De onde se levanta uma questão: tratar-se ia de um filme interessado em desmontar Hitchcock, com a petulância dadaísta de quem sobrepõe um bigode sem pé nem cabeça em um filme consagrado?



   Posteriormente,  haverá uma cena em que John Travolta, protagonista do filme, se arremessa ao mar a fim de salvar uma moça de pele clara de um afogamento. Nisso,  um nítido paralelo com o filme "Um Corpo que Cai", do citado diretor inglês. Na obra de De Palma, a personagem voltará à terra intacta, mas não como o ser distante e misterioso, à maneira da  Kim Novak de Hitchcock.

 Dessa feita, trata-se uma mulher com gestos e falas bem palpáveis. A partir da aparição da  moça, praticamente uma prostituta, abre-se uma operação importante na obra.




Antinaturalismo


A mulher trabalha com maquiagem, de maneira a tornar “natural” a aparência das pessoas, como ela mesma afirma. É, ao menos, o que Pensa Fazer, pois que a maquiagem no filme estará inscrita em cada plano ou rosto como método antinaturalista de filmagem.

    Há nesse procedimento algo daquele velho “elogio da maquiagem”, realizado pelo poeta francês Charles Baudelaire, igualmente em contexto de massificação urbana em que a marginalidade de anônimos em beiras de ruas era mais do que  evidenciada. Assim como uma nova relação entre Belo e Feio.

         Mas a obra de De Palma trabalha a partir de uma história de cinema já desenrolada e, por vezes, assimilada. Daí esse tom em que uma verdade dada já teria se tornado signo.



No caso, o próprio filme volta obsessivamente às fitas, aos frames de uma filmagem posta. Ou seja, o cinema se volta sobre si mesmo, na mesma medida em que o protagonista procura  recompor os elementos de um suposto crime em busca da obra perfeita ou da verdade em uma imagem.



Dessincronia


         Em "Um Tiro na Noite", o som do tiro ocorrido no acidente, a se encaixar com precisão ao visual captado faria da imagem uma prova, como em  “Janela Indiscreta”, do mesmo Hitchcock. Mas, pelo filme do diretor inglês sabemos que uma obra perfeita pode se configurar como grande engodo, passando, por um triz, do figurativo ao fugidio.


        Em "Blow up", de Michelangelo Antonioni, a quem o filme homenageia em seu título original (Blow out), a imagem do fotógrafo, personagem principal, passa de um suposto real à condição de um tipo de alucinação, em que a direção da obra incorporava os personagens e seus signos como ilusões de si mesmo,  em processo de dissolução no quadro. 


       Em "Um Corpo que Cai", James Stewart configurava-se igualmente como impotente diante das coisas, e buscara sua salvação em uma imagem representável. Em outros termos, procurava a vida em uma imagem duplicada, que é onde seu artifício, no desenrolar do processo,  volta-se contra si e sobre si, a explicitar a  natureza mortal e mortificante da figura ( imagem).  


 Contudo, se em Hitchcock haveria a sugestão dos artifícios empregados na filmagem, dos mecanismos implicados em sua confecção, em De Palma os elementos de cinema,  por um lado, comparecem  como diretamente desmontáveis a nossos olhos: quando, por exemplo, o assassino mata por engano uma moça que mais se assemelha a uma boneca de pano. Ou, no momento do indivíduo, tecnicamente, colar o som a uma imagem, uma vez que o resultado da sonoplastia nos chegará esvaziado de sentido e de estética. 

 Em suma, o real ou a verdade resistem a toda forma de representação e/ou  de sincronia. 



   Simulacro e Criação


               Mas haverá também um momento- chave do protagonista Travolta, com a moça em seus braços, enquanto a câmara gira em torno de si mesma entre o concreto e o abstrato, enquanto movimentos  circulares da mesma câmera  acompanham os fogos de artifício de uma festa na cidade, em um tipo de vertigem a  incorporar, em imagem, som e ritmo: o amor, as perdas, o trágico e a memória, em única e incisiva operação.


Nessa marcante passagem, o suposto brega e a mentira passam, repentinamente, a registro de possível verdade de uma condição humana. Uma repentina combustão de De Palma em cena,  equivalente aos fogos de artifício no local.



O simulacro aqui comparece como instância da potência de criação, como diria o filósofo francês G. Deleuze.  Instante no qual a câmera lenta compõe e decompõe sentimentos e seres,  como bem cabe a quem, respeitosamente, observa um homem e sua alma, uma mulher e sua ingenuidade, contornados por pontilhações esbranquiçadas no jogo visual. Sentido de moldura de cinema, ao se tratar de um instante fugaz filmado e tornado eterno por um registro na película -  arte da memória.  



         Filmado entre o kitsch e a crueza das ruas, "Um Tiro na Noite" faz da desconstrução de um arsenal de arte um trajeto sinuoso de imagens enganosas, com direito a  maquilagens borradas e andróginas bonecas.  

Simulacros assumidos em tom jocoso que, com e no tempo, passam a  reconfigurar  a possibilidade de uma verdade  humana, ainda que efêmera.

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