domingo, 30 de maio de 2010

Rimbaud,Alice e Tim Burton







“Eu é um outro.”


“Esta língua será de alma para alma, resumindo tudo, perfumes, sons, cores, pensamento fisgando o pensamento e puxando. O poeta definiria a quantidade de desconhecido, que desperta em seu tempo...

...a poesia não dará mais ritmo à ação; ela tomará a dianteira.

...Quando for quebrada a infinita servidão da mulher,quando viver por ela,tendo-lhe o homem, até agora abominável,dado dispensa,será poeta também ela!A mulher encontrará o desconhecido!

Diferirão de nossos mundos de ideias. Achará coisas estranhas,insondáveis, repugnates, deliciosas: toma-las-emos, compreendê-la-emos....mas inspectar o invisível e ouvir o inaudível sendo diferente de retomar o espírito das coisas mortas.”

(Arthur Rimbaud)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

PS

O Ricardo Calil falou em seu blog algo mais ou menos assim:que o Alice,de Tim Burton exploraria certas coisas,como desenvolver personagens originais,e que sobraria pouca energia para a história contada.

Não entendo bem a razão da história ter de ser o central.O que contaria,nesse tipo de cinema,é a capacidade de construir atmosferas sugestivas.E as imagens seriam as tais "histórias",com o que isso implica de outras imagens,de ideias sugeridas.

Ou seja,"nada de história".Muito menos de didática.Que é justamente o que considero um ponto forte no filme,diferente de tantas aventuras mastigadas e "bem concatenadas" que pululam como mesmice por aí.

Outro fator interessante é que não há príncipe encantado para uma fábula,um homem para a heroína ao fim de suas peripécias.Somente uma sugestão:uma forte relação de múltiplas camadas com o Chapeleiro Maluco, o homem nonsense-"andrógino" que não reaparecerá na dita história.

Sobre ser um filme com final "capitalista", o que outros críticos disseram,a mim soa patrulhamento, um injustificável ranço ideológico.Pois que, para se pensar dessa forma, é necessário buscar uma literalidade, que seria o contrário do que uma fábula representa.

O que o filme sugere é que a protagonista é uma moça de riscos,que crê em viagens vistas como impossíveis a certos recantos do mundo.Ou seja,na medida em que seu olhar se mobiliza,ela se abre ao universo.Tal como em o Peixe Grande,se situando, como se pode ver no último plano,inserida no mar,em sua imensidão.

E como aquele bichinho inusitado reaparece voando:entre céu e mar.

Me parece óbvio ululante,por se tratar de uma fábula.Ainda que um tanto atípica,por Lewis Carroll e T.Burton.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

O lúdico hoje no cinema (algumas considerações)



No blog do Sérgio Alpendre (chiphazard) retomou-se uma discussão em torno da relação lúdica com o cinema,com a coisa se desdobrando até mesmo para o lugar da crítica.Nesse espaço esboçante insisto- sempre que posso-, que se desconfie da pretensa objetividade de um crítico.As coisas se tornam mais perigosas,ideológicas nesses casos.Os que se fazem de neutros são mais temerários,já que tudo isso passa por uma linguagem.A dita função referencial é estudada em seu bê-a-bá como se o neutro estivesse presente somente em estilo.Ou seja,nenhuma linguagem é inocente.E se até para a ciência conta-se a interpretação...para a lingüística há enunciado e enunciação.

Por outro lado, levando-se em consideração que o “lado lúdico” pode se tornar também uma mera questão de fetichismo, e como toda idolatria, a se jogar a si mesma no vazio(Vertigo), proponho o quase impossível, que seria conseguir conciliar o amor pela arte com insights que sejam bem vindos como forma de prolongamento na obra e na vida.Confesso que prefiro o termo amor à paixão, pois essa última costuma ser muita das vezes meramente volúvel.Amor também pode ser retórica,mas, ao menos, parece mais interessante do que idolatria.


Já no blog do André Setaros(Setarosblog),o mesmo fala sobre a ausência de uma formação crítica de mundo nos críticos de hoje.Faz sentido.Ficarmos a nos perder em análises estruturais sem conexão com o mundo ou com o homem poderá interessar somente a “especialistas”.Sobretudo como algo sem objetivo,que não seja afirmar sua própria condição deslumbrada de “cientista”. O que pode ser pior, um cientista que não serve para nada.


Sem querer recusar, em princípio, qualquer forma de abordagem, sugiro um meio termo, fruição e reflexão, sem teorizações galopantes ou fetichismos adolescentes. Será possível?Pois, além do mais, as especificidades de estilo, de escrita deveriam ser respeitadas para o bem de nossa diversidade. Bem ao estilo das “Ciências Humanas”, de forma que um ponto de vista, ou de abordagem, não venha necessariamente a excluir o outro. Ou então estaremos falando de outras “ciências”.


Contudo, o que me interessou nesse momento, nesse espaço, é falar um pouco não tanto da crítica, mas do cinema lúdico, o que carrega consigo esse tipo de proposta como crença ou como projeto. Quando, nos comentários, Júnior falou algo sobre Edwards ou Stanley Donen,me senti no campo do brincante,pois de diretores que falam direto ao coração.


Nesse sentido, hoje teríamos as reflexões cinematográficas de Shyamalan,sobretudo a partir de Sinais,e que culminaria em A Vila e em A Dama na água. Seria possível restituir à imagem um lugar de contorno não necessariamente clássico, mas quase virginal?


Em A Dama na água, o diretor utiliza uma aparição inocente como forma de catalisar algo em um ambiente de condomínio fechado. Local ressecado, filmado com imagens baças que passarão pela prova dos nove no cinema: “Voltar a um Zero”. Com um trabalho com as palavras funcionando como apelo aos ouvidos, um pouco como no filme Cantando na Chuva, em que o casamento do som com a velha-nova imagem se dava como iniciação.Um tipo de operação em que se olhava para o cinema mudo como resgate de uma energia primária,como forma de avançar.Caso da relação com seres inanimados no espaço(um guarda-chuva,por exemplo) à maneira de um Chaplin,em que imagem e som remetiam a um novo olhar,de iniciático frescor.


Tratou-se, para Shyamalan,sobretudo a partir de seu terceiro sucesso, até chegar em A Dama na Água, de uma questão referente à “limpeza dos olhos”, por meio de um universo fabular. De problematizar, mas propondo caminhos. Retomou-se a narratividade oral, a partir de um detalhe pretensamente tolo como em Singing in the Rain: um peixe fêmea.,enquanto montava-se um quebra-cabeça de palavras, de forma que uma imagem de si e dos outros fosse ganhando forma e vida.O cinema como estratégia de imagens e ouvidos a serem lavados.Reiniciação.


Mas há quem há tempos não se interessa tanto em problematizar, mas em encarnar diretamente o desafio é Tim Burton, sabendo que a fábula pode se tornar um recurso como outro qualquer em uma Hollywood que se acomoda a certas fórmulas, a um ponto de fazerem somente girar em torno de si mesmas. Para ele, foi também preciso buscar outras nuances do/no espelho.


Partindo do estranho, das margens para se chegar a um novo centro, recriou a fábula crítica na indústria. Foi expulso da Disney como desenhista pelo fato de seus contornos não caberem no padrão da dita empresa para agora retornar, impondo seu próprio estilo à mesma, em um trabalho para Alice no País das maravilhas.

Burton sempre foi um recriador, seja com Edward, em Edward mãos de tesoura, a remodelar casas e paisagens americanas com suas garras. Ou em Batman e seu entorno freak, nada ocupado com a fidelidade ao gibi original.Mais à margem que os próprios seres era a própria cidade de Gothan, um torto centro urbano.

Seguindo a composição de uma América avançada tecnologicamente e, paradoxalmente, sombria tornou o anticlímax de O Planeta dos Macacos perturbador, de maneira que uma autêntica herança expressionista, imbutida por vezes em segredo em um típico blockbuster,fizesse com que o público,sobretudo o norte-americano,se sentisse desconfortável ao deixar as salas de cinema diante da suposta ilogicidade do final.O herói como um impotente, e perplexo a constatar que seu amado lar era super-equipado,mas nada acolhedor.Não por alguma violência explícita.A câmera se afastava a filmar o Lincoln Center como um arquitetura pesada,algo gótica,passava por macacos com capacetes, armas,telefones para chegar em um céu sombrio e nevoento com ruídos de vozes de máquinas ao fundo, igualmente acompanhadas à distância.Como a névoa,tudo era inconcluso. Como em Buñuel, o absurdo como trunfo (do mundo e da América).


Em Peixe Grande
, seu cinema despertou novo estranhamento a quem esperava um típico produto “Tim Burton”.Aqui,como Shyamalan, problematizou o lugar da fábula, do lúdico no mundo de hoje.Nesse sentido,apesar de um ter sido leitor contumaz de Allan Poe,sua modernidade estaria mesmo para um sentido de Rimbaud e seu mundo das visões.Um filho que julga e não acompanha o pai por considerá-lo mentiroso em um inusitado labirinto do comum e do incomum,de verdades e mentiras, que desagradaram tanto a quem esperava menos suavidade na fábula,como pouca estranheza da mesma.Peixe Grande,um filme de retas e de curvas.

Em seguida, o diretor se entregaria a retomar e emular os caleidoscópios musicais de Busby Berkeley para a refilmagem de A Fantástica Fábrica de Chocolates,vinculando-se aos antigos musicais, antigo gênero do elogio do lúdico.O lúdico como trunfo,como olhar de conhecimento,partindo de um espelho invertido para se chegar a um ponto de avanço, não desprovido de enigma.Tanto no que buscava a imagem como a trama.


Nesse último Alice no País das maravilhas, Burton fez com que os caleidoscópios citados fossem reconvertidos em um nonsense labiríntico de Lewis Carroll ,em uma desconstrução de certa ordem lógica,fazendo com que sua câmera enxergasse sempre a partir de um reflexo de algo,de um outro,como no caso da relação entre livro,imaginário prévio e imagem.O que já havia nos Batmans,em que se via uma cidade a partir do olhar de outros,de alheios à ela e,de certa maneira,aos gibis.


No caso de Alice,apesar do filme não ter sido feito para 3 D,o formato,por motivos maiores,acabou por se impor na produção.Felizmente e por morar em uma quase roça,pude vê-lo no formato “normal” e acho que percebi melhor o que seria o tal projeto original e como Burton teria reinventado por uma vez mais a aventura e a fábula no dito “cinema contemporâneo”.

Partindo de uma protagonista mulher com caracteres bem singulares e autênticos, fez com que cada detalhe de plano se desdobrasse em novos mundos.Trabalhou um jogo visual aberto e à altura dos jogos de palavras implicados, interagindo com as“ histórias infantis” de um certo repertório clássico.Para tanto,inseriu uma inusitada abordagem de animação,mas sem relação alguma com o habitual infantilismo de certa Hollywood de uns tempos para cá. No fundo,é tão ou mais grave que um “desenho sério” como Ratatouille.



Em Alice, a personagem precisa se redescobrir.E o cinema também.As sacadas de nonsense são preciosas, até por que não chamam atenção para si mesmas. Sem intelectualismos estéreis, ao jogar um jogo grave, infantil ,o filme restitui à imagem a força virginal do olhar proposta por Shyamalan em seus melhores momentos e pelo mesmo Burton em Peixe Grande.


Alice é uma obra que trabalha de maneira inventiva os sentidos, junto à dimensão originária do que seja,de fato, a aventura..Como reiniciação e iniciação. Redescoberta de um estatuto de linguagem que se faz reestatuto,tal como O Chapeleiro Maluco vivido por Johnny Depp, andrógino da imagem a desconstruir o aparato dessa lógica que implicaria ideologicamente maquinismo ou insensibilização.

Não acredito tanto, como sugeriu Zé Geraldo Couto em um ótimo texto, em postura feminista,mas em elogio do que seria uma alma feminina em expansão.Alice e o Chapeleiro.Assim como o visionário da poesia Rimbaud era um andrógino.


O filme remodela estética e reflexivamente o cinema de fábula, não usando das tensões de espera ou da didática previsíveis, mas de fundos de cena que brincam e se sobrepõem, o que resultou em algo fiel tanto a Lewis Carroll quanto ao diretor.




Em Cantando na Chuva ou em A Roda da Fortuna um cenário era substituído por outro, em sobreposições de mundos que se recriavam. Explosões e reimplosões. A trajetória em Alice é a da mobilidade, da descoberta do olhar, como as mudanças de tamanho em seu corpo. Com o tempo, o filme diminui a ótica de reflexos mais baços para ir ganhando uma forma mais intensiva e que sabe ser discreta justamente no momento da batalha final,que só se leva à sério enquanto sugestão simbólica,à distância.


Não à toa haverá uma breve coreografia do Chapeleiro Maluco, que será posteriormente retomada pela companheira. Em A Roda da Fortuna, Astaire e Charisse eram em princípio estranhos que aprendiam um com o outro em uma mediação de cenários diversos. Em O Pirata, Garland aprendia a ser mulher, desdobrando-se nos cenários,nos mundos do outro- Gene Kelly- e seu crescimento estava paradoxalmente vinculado a uma lógica do lúdico. A ex- menina que, diante de um grande aperto, descobria-se improvisando,tornando-se, como o companheiro, uma artista.


Em Alice,a fusão de oralidade com a imagem, de frases que não dão importância para o estatuto do “sentido” relacionadas às operações cenográficas não estariam distantes de que seria um desses musicais. Seu filme anterior, Sweeney Todd, era um declarado. A Fantástica Fábrica faria de um parque de diversões a provar pais e filhos uma citação e recriação dos caleidoscópio visuais do antigo coreógrafo(inovador) de Hollywood.



É com esse característico e incomum apuro visual que Tim Burton reencontra o sentido grave do lúdico.Com Lewis Carroll, encaixe e soma. Como a menina e o Chapeleiro,visionários em um modo de produção e de distribuição que lhes parecem alienígenas(caso do 3D,por exemplo).

Já se sabe que não se foge do mundo estando na indústria. Mas, a partir da mesma, pode-se recriar e criar com uma autenticidade de Alice.Fazer com que o requinte bem dosado funcione como Visões, reflexões e prolongamentos.A linguagem consumando certo estatuto do olhar,como a protagonista que, ao se lembrar da menina, poderá seguir adiante.Cinema como redescoberta e descoberta.

domingo, 9 de maio de 2010

Ilha do Medo em debate






A dimensão alucinatória nos filmes de Scorsese não representa bem uma novidade.

Ao final de Taxi Driver não sabemos se a fama do protagonista por ter salvo uma moça da prostituição-o destaque dado a ele como herói em um órgão da imprensa,ou o reconhecimento dado pela família da ex-prostituta-seria ou não mais uma obsessão de sua mente.

O humorista pífio de O Rei da Comédia encena o tempo todo para si e para os demais.Vive no proscênio,leia-se: no delírio-a um ponto em que acredita nas mentiras que cria,que seu ídolo quer mesmo recebê-lo,que é amigo de várias celebridades,...Ao final, quando teria conquistado a fama,a cena é filmada como as demais de "loucura",com um toque de onirismo irônico,crítico, que não nos obriga a crer piamente no que vemos.

O Cristo do diretor em A Última Tentação parece ir na contramão do que sugeriu seus detratores ortodoxos.Deliraria mesmo quando crê que poderia ser um homem de família,etc até um momento em que cai em si para voltar à cruz.Mais um projeto esquizofrênico em que se confundem amor e guerra/ódio, demônio e anjo em uma aparição feminina, supostamente graciosa de uma ente espiritual.

Em O Aviador a preocupação não é com Howard Huges,o suposto biografado,como muitas vezes foi (mal) compreendido,mas com um visionário-um artista?- que, ao mesmo tempo que é pioneiro, abrindo caminho com suas visões, ao procurar submetê-las à matéria,corre o risco de ser sugado pelas mesmas,tornando-se uma espécie de autista,trancafiado em suas prisões."The way of the future" é a frase recorrente nesse épico experiemental.Gênio ou louco?Demente e gênio.Espírito,idéias e matéria-riscos a correr.

Já em A Ilha do Medo,o diretor fez com que a operação fundamental de parte considerável de sua obra ganhasse um acréscimo expressionista em luzes,cenários,dramatizações,com as cisões sendo explicitadas,sobretudo quando nos aproximarmos mais do final, como clareza de proposta.
Tratou-se de pegar, consciente ou inconscientemente, um histórico desses filmes citados,de suas obsessões de subtexto, oferecendo uma obra de cunho mais explícito,conceitual.O tempo dirá se,de fato, um trunfo ou uma danação.


Fábio Andrade,da cinética disse:



" Quando entramos na ilha, Scorsese nos instala na mente de seu protagonista. O nível dessa exclusividade enunciadora, porém, só será revelado bem adiante – o que faz da fruição do filme uma releitura de si mesma. Ilha do Medo existe todo em função desse recuo de ponto de vista, que é o momento exato em que nossas expectativas são desmontadas, e somos reapresentados ao filme que assistíamos. A câmera, aprendemos, nunca se separou de Teddy (Leonardo DiCaprio); é seu olhar que determinara toda a encenação – seja na maneira como um fósforo riscado ilumina magicamente toda uma cela, ou no fragilíssimo simbolismo que traz de volta a lembrança da mulher, com golpes delicados de superexposição e uma estilização de cena francamente banal. Há algo de escroque nessa quebra de fidelidade, que lava suas mãos de uma encenação quase sempre ineficaz, onde cada ilustração se justifica pela loucura de uma personagem.
Se vemos em tela uma série de recursos de dramaturgia que beiram o primário, esse recuo empurra sua responsabilidade diegética para uma das personagens. O filme é primário pois a auto-dramaturgia da imaginação de seu protagonista assim o determina. Neste momento, a câmera é capaz de abandoná-lo, de olhá-lo criticamente de uma posição externa que aparecia no filme apenas em breves lampejos (a cena em que uma das pacientes bebe água sem um copo, por exemplo – ainda assim, cena enigmática demais para configurar um distanciamento de fato). O que há de realmente problemático em filmes que partem dessa necessidade de um “golpe” no espectador, é que toda sua realização se transforma em escamoteamento – uma vez que o diretor sabe de algo que não podemos saber antes da hora. É preciso despistar o espectador, alimentá-lo de pistas falsas para, ao final, afirmar a soberania da instância enunciadora em uma sequência explicativa (algo que é tão problemático aqui quanto em um Amnésia, ou na sequência final do Psicose original, por exemplo). Em contraponto, tudo que precisa ser explicado não pode admitir qualquer ambiguidade – limite que tem seu exemplo mais gritante na caminhada final pelo jardim do hospital de um enfermeiro, carregando os instrumentos para a lobotomia quando vai buscar o protagonista.
A sobrevivência de filmes como esses depende do quanto esse escamoteamento pode ser envolvente em si mesmo e do quanto o golpe explicativo ainda suporta de ambiguidade – primazias das quais Scorsese abre mão ao se irmanar indistintamente à visão torpe e compensatória de sua personagem, trocando os prazeres de construção do próprio filme por uma fidelidade conceitual. São filmes difíceis de se criticar, pois todas as brechas de sua encenação estão devidamente protegidas por seu arcabouço conceitual. Só a crítica política é possível. Ao fim, Ilha do Medo faz um mesmo movimento de afirmação enunciadora que Um Homem Sério (nos Coen, ponto de partida; aqui, de chegada), mas que acaba produzindo um sentido reverso: reafirmar a autonomia da instância enunciadora. Mas lá, onde havia transparência, agora há encobrimento. É revelador, portanto, que a personagem principal opte, ao fim, por sustentar-se em uma mentira, mesmo que ela a leve à “morte” – ou, como escreve Slavoj Zizek a respeito de O Cavaleiro das Trevas, “A Mentira precisa ser elevada a Verdade”. Foi ela, afinal, o valor determinante da lógica regente de todo o filme."

terça-feira, 4 de maio de 2010






Dando prosseguimento à questão dos "homens comuns",uma breve orientação sobre Marcas da Violência-nem tantos assim o compreenderam(sequer,por vezes,o básico).Por isso,o comentário aqui, como uma pequena ficha a quem se interessar.



Pelos cortes rápidos, entre outros fatores, o filme apresenta algo de western.O gênero citado era pautado pela investigação,ainda que mítica,da formação cultural norte-americana.

Marcas da Violência no original se chama A History of Violence, de onde se infere que o filme estabelece uma relação entre violência e pressupostos culturais de constituição de uma nação. Como no caso de uma família.

Trabalhando a partir de uma história aparentemente mais convencional que outros de seus filmes, Cronenberg atrapalhou a vida de muita gente. Tratou de buscar, com senso de justeza, o estranho menos explícito enfronhado na vida de um cidadão comum. Para tanto, fez com que a limpidez da imagem explorasse potencialidades insuspeitas, de maneira que cada rosto e ambiente carregasse uma voltagem a mais de ambigüidade, de mistério.

Por essa dimensão de um comum levemente se torcendo, com cortes rápidos de western, a ação é filmada em detalhes congelados, a provocar algo incômodo, podendo remeter o espectador a seu próprio gosto por certos filmes de ação. Sobretudo em uma radiografia de cadáveres literais e culturais postos à mostra.

Há uma cadeia de violência-de passado e futuro, de pai a filho-, no filme, de laços socioculturais, mostradas sem a necessidade de recorrer à “profundidade” psicológica ou a outro recurso do tipo. Saberemos que o protagonista apresentava outra identidade, mas não muito mais do que isso.

O filme prioriza os rostos de maneira que as falas quase não emplaquem em seu desenrolar. Nesse sentido, o final seria a prova dos nove, com uma tensão e distensão entre familiares em uma mesa de jantar a evocar o peso de um duplo sangue: o de violência e o familar. Percebe-se, pelo enfoque de um estado possível de comunidade, uma evocação longínqua do western restituído à contemporaneidade, enquanto os demais momentos carregam uma carga física, um peso nada distante dos códigos desse gênero americano, adaptados a um mundo de dúvidas e problematizações.

Cronenberg não trapaceia. Desde o início da obra nos entrega um tanto do estado do espírito planejado, para somente depois nos instalar em um modo de vida mais pacato. Dele, procederá a um exame cuidadoso e sugestivo do “normal” a partir do mais comum, do “convencional, levantando, com limpidez e mistério, dados de um histórico de vida, de uma nação e de uma cultura. De filmes,inclusive.O seu é insólito-a um tempo incômodo e terno.