sexta-feira, 27 de julho de 2012




"Meu Tio", de Jacques Tati pode ser encarado a um tempo como uma obra de humor e de austeridade (um pouco como se Robert Bresson resolvesse fazer uma comédia, o que nunca deve ter passado por sua cabeça, já que seus filmes não trabalhavam com a comicidade das coisas).

Austeridade, em primeiro lugar, pelo tipo de filmagem que não se preocupa em fazer concessão para agradar seu público. Em segundo, pelo sentido rigoroso e detalhista da observação.

Mas, afinal, o que Tati observa a partir de seu cômico protagonista Monsieur Hulot? Um universo moderno- solidificado e metálico-, em que tudo obedece a uma prévia função de desempenho.

Para tanto, a filmagem aposta em planos abertos, que reforçam, de forma contraditória, a visão de um mundo rigorosamente fechado, tendo como base o lar burguês dos Arpel. Quanto mais distanciada a câmera de Tati, menos crível tal universo nos parece. Por intermédio da janela da casa, nos é dado ver um mundo rigidamente circunscrito, delimitado.

Do outro lado da cidade, há a moradia de Monsieur Hulot, onde, pelo contrário, os espaços, de alguma maneira, se comunicam. As janelas evocam a obra “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, em que as moradias, em algum momento, poderão se tocar. Por diversas vidraças e quadros, a câmera respira tanto nos espaços exteriores quanto nos interiores.

É como observadores interessados que acompanhamos, via janelas e ruas, os vai e vens de Houlot, sua presença a cruzar, quase imperceptivelmente, com a de um outro ou outra nos corredores, em versão menos veemente da formidável cenografia proposta por Jerry Lewis para o “O Terror das Mulheres”, obra-prima do humor.

Para a casa dos Arpel, Jacques Tati reserva uma visão mais cruel, com insignificantes ruídos no local a ganhar enormes proporções. O peixe, símile fajuto de um chafariz- versão privada- só libera sua água quando a visita é do interesse da família.

Já a maneira de a câmera adentrar o universo de Hulot se dá por meio de tijolos rachados na rua. Tais rachaduras presentes no quadro de uma imagem oferecem espaço para que o sobrinho do protagonista sinta-se mais livre, e até disposto a comer um sanduíche preparado por um homem nada ocupado com a excessiva higienização do alimento.

Tati, claro, tende sua simpatia para o mundo onde nada é deveras "clean" ou metalizado, ao contrário da cadência ritualística e estática ocorrida na casa dos Arpel. A mesma a compor um quadro insolitamente circular, hierático, em que até uma criança se arma de terno e gravata, preparando-se, desde cedo, para o mundo da produção paterna.

É quando Hulot, desajeitadamente, molha seus sapatos na casa dos Arpel que o caos moderno ameaça se instalar, provocando certo desarranjo nas coisas, um pouco como o Peter Sellers do clássico “O Convidado bem trapalhão”. Nesse instante, a rachadura antes vista somente na rua comparece na imagem da casa impecável, trazendo a possibilidade de um encontro real, ainda que fortuito, entre os dois mundos: o de Hulot e os do Arpel.

Ao passo que, no ambiente de trabalho, em meio a ruídos que travam a comunicação, o protagonista faz com que plásticos produzidos de forma intensivamente padronizada ganhem involuntariamente um tipo específico de deformação a que alguém denominará “doces”. Tati acolhe o mundo da gratuidade, da brincadeira, de uma maneira em que pareça prever certos problemas do dito mundo moderno, condenado a suas vidraças e camadas de plástico.

Apesar das distinções, Charlie Chaplin conseguia nos lançar em ambiente já nascido caduco em seu interior (“Tempos Modernos”). No universo deslumbrante e deslumbrado dos Arpel, a câmera mal respira com as coisas e os personagens, enquanto os cômodos da casa não se interligam.

Entre a alienação adulta e a dita “ingênua”, o diretor aposta na segunda, onde certo lirismo se faz possível. O que não se configura exatamente como simples nostalgia. Seu filme, ao evocar um mundo moderno que então nascia não deixará de traduzi-lo em um tipo de ficção, que guardará relações certas com o filme de horror. Seja por conta dos ruídos circulares, infernais, seja pela caricatura de uma burguesia que flerta todo o tempo com o caricatural, ou seja, com o grotesco.

Pode-se rir à vontade, mas algo certamente ficará retido na garganta, uma vez que a obra adquire uma austeridade de observação, em algo semelhante a de um Michelangelo Antonioni, cineasta italiano. O mesmo a filmar um universo cravado em eixo aprisionante, em que, à força de um tipo de lucidez do olhar, maior se fazia a possibilidade de desconstrução de um mundo, com seus signos e valores.

No entanto, em Hulot, a poesia pode até comparecer como minguada a olhos desatentos. Contudo, a imagem final – de um branco lençol levemente se estendendo e distendendo de uma janela - resumirá bastante do estado de espírito desse belíssimo “Meu Tio”. 


quinta-feira, 19 de julho de 2012

Blake Edwars e Peter Sellers




"À época do lançamento de "Um Convidado Bem Trapalhão" ( "The Party"), Pascal Bonitzer, obcecado com as questões políticas que se incrustavam ao universo artístico (crítica inclusa) naquele momento, escreveu nos Cahiers du Cinéma: "Um ator ...que simboliza o terceiro-mundo destrói uma mansão que simboliza Hollywood – uma alegoria da revolução que vai revolucionar o cinema".

Embora o diretor diga que estava apenas querendo encenar algumas gags ao lado de Peter Sellers – e que no máximo queria mostrar uma outra forma de fazer cinema, um novo alicerce de comédia -e essa sacudida na estrutura já não seria uma sugestão de revolução estética? –, a análise de Bonitzer é no mínimo uma maneira muito interessante de dizer que o cinema, no final dos anos 60, se achava embrenhado pelas vias mais inusitadas.

Não havia roteiro para o filme, apenas linhas gerais de ação e de descrição dos personagens, anotações a partir das quais tudo era improvisado.

A clássica cena da festa em "Bonequinha de Luxo", em 1961, já tinha sido em grande parte improvisada, como um momento encantado em que se pressagiava o prazer indescritível que seria acompanhar passo a passo – quase em "tempo real" – a festa de "Um Convidado Bem Trapalhão".


A mestria da duração, o trabalho precioso com o espaço - uma casa modernosa que remete à sátira arquitetônica de Meu Tio – e Jacques Tati é uma influência confessa, a lógica de acúmulo - gags se somando até não caberem mais nos limites do filme e este transbordar de vez, a função dramática que os objetos adquirem -a estátua de um anjo urinando e o sistema de irrigação do jardim intensificando o desconforto de Hrundi.

Não importa o quão simples ou – melhor ainda – desinteressante seja a situação, Blake Edwards sempre acha um jeito especial de compor as gags. Apesar de ser um cineasta surgido já numa etapa avançada do pós-guerra, ele não fez parte da Nova Hollywood .

Em texto publicado na Senses of Cinema, June Werrett explica bem essa posição de Edwards ao mesmo tempo prolongando o classicismo e incorporando formas modernas de explorar a cor, a iluminação e a concepção de atmosfera. Ele chega a ser visto por alguns como uma extensão moderna de Ernst Lubitsch - e de fato desde filmes como Ninotchka e A Viúva Alegre não se viam tantas portas abrindo e fechando repetidamente, num verdadeiro balé de comédia física.

"Um Convidado Bem Trapalhão" é um excelente exemplo desse prolongamento do clássico através de um instrumental estético moderno. Trata-se, também, de uma das mais elegantes "comédias vulgares" de todos os tempos: o slapstick mais autêntico divide o quadro com uma sofisticação inabalável.

A trilha de Henri Mancini, que uma bandinha de jazz toca na festa, traduz com precisão o clima, contribuindo para uma estética lounge. Mas essa ambiência em que tudo a princípio parece equilibrado, relaxante, começa a ceder espaço ao caos.

No final, quando chegam os amigos da filha da dona da casa (acompanhados de um elefante pintado com mensagens de protesto pacífico), a mansão já se tornou um parque de diversões cujos brinquedos fugiram ao controle e ficam dando voltas e voltas com seus passageiros.

Figuras doces em meio aos tubarões da indústria cinematográfica, Hrundi e Michele escapam pela manhã e saem no carrinho engraçado do indiano. Para fazer jus à ambigüidade da aproximação entre homens e mulheres na obra de Edwards, eles não trocam um beijo, apenas se despedem parecendo tanto dois bons amigos quanto amantes em potencial. Naquela magnífica cena da confusão no final da festa, mesmo que a despeito das intenções de Edwards, a revolução já estava feita – para o bem do cinema.

(Luiz Carlos Oliveira Jr.)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

 
A CARTA / La Lettre (1999), de Manoel de Oliveira


Maior será o equívoco a colocar de lado o magnífico A Carta, que não é um dos filmes mais marcantes do ano apenas porque o é da década.


Oliveira detém-se ali na malfadada história de am
or entre uma aristocrata francesa, a Mme. de Clèves, e um roqueiro português, Pedro Abrunhosa.

A audácia temática talvez fique mais clara se lembrarmos que Oliveira não liga dois mundos distantes (o da aristocracia e o do pop), mas dois séculos distantes: o XVII e o XX.
 Pois o XVII é o século de Princesa de Clèves, romance sobre uma mulher que se casa sem amor com um homem que muito respeita (exatamente como a personagem de A Carta).

Oliveira não faz nenhum esforço para atualizar o mundo de Mme. de Clèves. ....
 
 ...( )...

Bastaria essa contradição para deixar os espectadores com olhos e ouvidos abertos. Pois Oliveira faz com que dois mundos – um extinto, ao menos teoricamente – convivam no mesmo espaço e no mesmo tempo.

Essa sensação de estranheza que qualquer espectador sentirá, com razão, ao ver o filme, prolonga-se na curiosa figura de Abrunhosa, o roqueiro, que também se apaixona pela mulher e se vê carregado por essa circunstância a um outro século.

Haverá quem pergunte: e daí? Daí que todo o nosso mundo de fim da História vê-se subitamente abalado pela constatação de que o presente e o passado mantêm entre si relações mais curiosas e profundas do que imaginamos habitualmente.

Ao proceder a essa torção sutil do tempo, Oliveira não mistura dois mundos e duas épocas perfeitamente diferentes, dois modos de sentir e experimentar as coisas, mas subverte a noção de tempo, permitindo-lhes conviver num mesmo espaço – que não é o da Paris contemporânea propriamente, mas o do filme.

Um artifício que lhe permite refletir sobre o que, na vida, é mutável e imutável. Não somos seres simples. O solo em que pisamos é formado de muitas camadas, que se vão acumulando. Seria insuportável pensar que a última – o rock, no caso
– devora e destrói todas as demais. Em cada um de nós existe um lado Abrunhosa e um lado Clèves. Cada ocidental carrega em si essa carga contraditória, composta pelos vários momentos de sua história e de seu pensamento. Esse é o fundamento profundamente realista do filme, em que o arbitrário irrompe com toda força, apenas para chegar com mais força e evidência à demonstração de uma verdade profunda." 
"(trechos de um texto do Inácio)" 

segunda-feira, 9 de julho de 2012



"Marnie", de Alfred Hitchcock, como lugar dramatúrgica da obra é uma personagem frígida. 

Mark (Sean Connery) é aquele que deseja possuí-la. Neste caso, torná-la mulher e curada de seus traumas.

Na dimensão estético-cinematográfica, Marnie incarna o imponderável da Beleza, da obra de arte.





Ora, em muitos Hitchcocks as imagens se acumulam umas sobre as outras, em contra-luz. O desafio para Mark será, pois, o despir cada uma dessas camadas para se chegar à mulher.

Para tanto, necessitará submetê-la ao Real, desnudando-a física e espiritualmente e, assim, poder chegar a alguma luz .  Ou seja, possuir a obra de arte, mas, sobretudo, a mulher. 



Trata-se de um exercício de quase desmodelamento: a cena final, em flashback, filmada com a câmera bem distante dos seres e dos objetos, e de maneira disforme,  já anuncia certas experiências de seu herdeiro,  Brian De Palma.


Nesta "grande obra doente", nas palavras de Francois Truffaut- assim como Marnie é a obra de arte problema para Mark- se dará o difícil encontro entre o Imaginário e o Real, como o lugar, por excelência, do cinema e do amor.

Desse equilíbrio difícil, Hitchcock nos legou um de seus melhores trabalhos.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

"A arte de Rossellini é saber dar aos fatos a um só tempo sua estrutura mais densa e mais elegante; não a mais graciosa, porém a mais aguda, a mais direta ou a mais decisiva.

Respeitar o real não é, com efeito, acumular as aparências, é,
ao contrário, despojá-lo de tudo o que não é essencial, e chegar à totalidade dentro da simplicidade.

É verdade que vários de seus filmes fazem pensar num esboço, o traço indica mais do que pinta. Mas será preciso considerar tal segurança do traço como pobreza ou preguiça? Seria o mesmo que criticar Matisse."

( André Bazin)



" É aqui que o estilo revela sua riqueza, embora seja preciso, para admirar essa alta catedral, libertarmo-nos do prestígio do gótico flamejante que cega a maioria dos críticos.

Em Rossellini, temos "apenas" um desenho, o esboço de um talhe vigoroso e direto, cuja minúcia iguala o fervor."




( Henri Angel sobre o cinema de Roberto Rossellini)



"Ladrões de Bicicleta" ( De Sica) já é o neorrealismo com elementos chaplinianos, circenses ( O mundo versus o indivíduo, a poesia crepuscular, afetividade). 


Tais  prolongamento dariam, inevitalmente, em Fellini- grande clown.


( Embora Fellini  reconhecesse somente Roberto Rossellini como grande artista neorrealista).