quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A Gravidade da infância,onde estará?





Decidi passar A Fantástica Fábrica de Chocolates para meus alunos.Alguns questionam:pra que uma refilmagem?
Primeiro:Tim Burton é um recriador e ele nunca mimetiza algo.Seus Batmans não são fiéis aos gibis, no que está a força dos filmes.É fiel,antes,ao cinema de autor.Cinema de fábulas invertidas.Um verdadeiro criador de mundos(um demiurgo,por fim).
Seu Batman pode até parecer um tanto ínfimo frente aos demais aspectos.Claro, o que importa é a vida/morte de uma cidade,Gothan City, moldada como mundo alegórico de vida moderna ou pós-moderna.Por isso ela se constitui como arquitetuta gótica.A Mulher-Gato bate de frente com o Batman por razões,fricções eróticas devido à semelhança entre esses seres tão à margem.E o poder de sedução dela advém de assumir aquilo que ele prefere conter como fajuto em sua roupagem de super-herói,protetor de uma cidade.Ela é a escancaração de seu lado sombra,em versão ninfomaníaco-demente.Só que carrega com honestidade essa sexualidade difícil,"pesada",enquanto Batman prefere se refugiar em um tipo específico de politicagem correta.
Burton, em sua ânsia pela recriação, deu também vida "completa",autônoma à Ed Wood.Tornou Edward mãos de tesoura,que carrega consigo o excesso e a falta, um recriador das casas estandardizadas da América do Norte.Continuamos aqui, em todo caso,com os vestígios das alegoria do Batman.Largos excessos são, em outros moldes, a outra face espelhada das largas faltas de um país.
Em Planeta dos Macacos ele investe novamente na recriação, centrando fogo nesse mundo onde progresso tecnológico e belicismo, novamente os excessos e as faltas, se dão as mãos como cordas interdependentes de um mesmo "Planeta"(novamente alegorizado)".Raras vezes uma superprodução, um espetáculo puxou o tapete de seu público com tamanha contundência e convicção,evocando ondas de indignação na "nova-velha América",já antecipando as faltas(excessivas)dos "Bushismos" de praxe.É seu filme de horror,por excelência, mais assustador que qualquer coisa que já tenha feito. Alguma outra vez o teor gótico-expressionista chegara a comparecer com tamanha precisão quanto nessa "fábula político-cultural"?
Como não há tempo,voltemos à Fábrica.Seu filme é infinitamente mais bem encenado que o original.E ainda opta por uma genial recriação das coreografias e cenários de Busby Berkeley,o mestre dos movimento caleidoscópicos dos musicais clássicos, quando das cenas com os ajudantes de Johnny Depp na conclusão dos jogos em que cada boçal garoto se arremessava.Outra evocação direta:Escola de Sereias, de George Sidney,em que se reformula, em caudas de chocolates, os nados sincronizados de Esther Williams e trupe(aqui representados por "homens-anãos")que, por sua vez,à época já davam continuidade aos caleidoscópios do mesmo Berkeley.Poucas vezes o flerte com certo freak compareceu de forma tão refinada e requintada quanto nessa fábula musical.
Mas creio que o ponto em que mais incomoda está nessa capacidade que Burton tem de ser "tão parte de seu tempo" e com tamanha lucidez.Afinal,essa obra evoca a todo o tempo a morte da infância.Daí,essa evocação desses musicais ao longe,cada vez mais improváveis, para uma adolescência aborrecente antecipada como em um flash. Talvez venha também daí o diálogo com certo tom atomizado da montagem.
O próprio adulto etário muita das vezes não passa de um adolescente otário.Pode-se falar em fenômeno do infantilismo.Mas o melhor seria chamar talvez "adolescentismo permanente", ou quase. A Fantástica Fábrica é um filme que aborda a infância, mas o supremo horror está em que nela não parece haver quase infância alguma.Fica-se sempre por um triz, já que o próprio protagonista adulto é também alguém constituído por uma infância abortada.Somente aquele que vence a brincadeira é que,na verdade,carrega consigo certa delícia e gravidade desse estado de ser e estar no mundo,,sendo uma exceção naquele mundo.E o próprio J.Depp se (re)iniciará em algo catalizado pela fricção com esse "último dos meninos".
Tim Burton é um dos únicos diretores a ainda bater nas teclas de um mundo adolescente em demasia, usando ironicamente essa que é uma das maiores armas do adolescentismo disseminado como ditadura da maioria: o filme industrial.O outro,claro,é M.Night Shyamalan,a questionar o lugar das ficções, das crenças que elas implicariam em um mundo que se esqueceu delas,que as trataria caducamente como algo "pequeno", ingênuo ou passadista.Ou seja,um mundo que talvez tenha se esquecido de "si mesmo".
Assistir a esse trabalho e ao último Shyamalan é como comprovar o que essas ficções fabulares carregam de "necessário" diálogo com nossos tempos,sem nenhum pingo de tola ingenuidade.A Fantástica Fábrica,que é o que importa nesse comentário,é um trabalho de um mago de marca maior.De um dos sobreviventes desse tipo de magia que,quanto mais se afirma como ficção/fricção(aqui vale o trocadilho analógico),maior o discurso de grave lucidez do adulto/criança.Tamanha lucidez só poderia se dar mesmo no limite do inebriante.
A.C.

"Se depois de um dia a gente descobre que suas ocupações são mesquinhas e suas profissões petrificadas, sem nenhuma relação com a vida, por que não voltar a olhá-los outra vez como uma criança olha para uma coisa estranha, do âmago de seu mundo...,que é, por si só, trabalho, dignidade e profissão?"
(Rainer Maria Rilke).

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