terça-feira, 29 de setembro de 2009

Mann



Se existe ainda um diretor capaz de nos surpreender em sua concepção pessoal de cinema dentro do panorama industrial, esse homem se chama Michael Mann.Mann consegue realizar um cinema experimentalista dentro do surrado gênero de ação policial como poucos.
Ele não é como Burton, um demiurgo.Seu cinema trabalha com a captação da torrente descontínua do universo urbano.Seus personagens são devorados pela personagem principal, qual seja, a selva urbana.Seus "heróis" são seres fraturados, que só têm a deixar cair sobre si os detritos de um mundo pavorosamente em descontinuidade espacial e estilhaçado.Dessa captação, surge bruscamente uma condução de tempo, que nos remete ao jazz de Charlie Parker ou Miles D.Por vezes brusco, dissonante, ou mesmo atonal .
Em “Colateral”, o herói e o vilão (vividos por Jamie Foxx e Tom Cruise, respectivamente) se misturam a ponto de chegarem a uma combinação, cujo resultado nada mais seria que um reflexo das luzes urbanas entrecortadas e filmadas por Mann.Poderíamos falar em sobras tanto quanto também em sombras,já que esses personagens refletem as fraturações desse universo urbano pós-moderno.São indivíduos deveras solitários, lançando sua ínfima “identidade” nesse mundo enorme, incomensurável.
Dessa forma, ele formula os elementos físicos da metrópole de Los Angeles (onde se perdem seus personagens)do mais concreto ao mais abstrato(sobretudo em Miami Vice),que seria na verdade sua personagem principal.Em seu cinema, as várias camadas da cidade se destacam e, inesperadamente, passam a nortear(ou bem desnortear)o fluxo dos acontecimentos:Toda uma derivação de fundo de cena que projeta um novo labirinto com ritmo todo próprio, de onde residirá a instalação de certa poesia crepuscular urbana.
Essa instalação do abstrato na selva concreta, ou vice-versa seria o resultado de um tempo de encenação que digitalmente flagra “puros” fluxos urbanos (um pouco semelhante ao Brian De Palma de “Um Tiro na Noite” ou o “Pagamento Final”) e também prima por certo improviso sonoro e visual.Não à toa em uma cena de “Colateral”, os personagens abandonam suas tarefas, a fim de apreciar e conversar sobre a execução instrumental de músicos de jazz.Essa seria uma das chaves para se adentrar mais e mais no método Michael Mann de se fazer cinema.Porém, mesmo o fato de que o frontal de cena seja contaminado pelo fundo dos enquadramentos não impede que sejamos brindados com rostos marcantes em quadros vivos,quase épicos.No entanto, quase nunca os personagens são enquadrados juntamente.Por exemplo, em Colateral há primeiramente uma espécie de abismo entre os protagonistas, mesmo que o suposto herói já tenha se misturado com o vilão.Por fim, ambos refletirão um tanto dos vários mundos da metrópole de Los Angeles, divididos a princípio, mas em estranho estado de hibridismo e ebuição.Ou seja,todo esse fluxo equivalente a um belo temporal termina por igualar um ao outro, como se vê na última e marcante cena final do metrô, mas de uma maneira que a cidade prosseguirá nela mesma, exterior a eles, a extravasar seu “balé de luzes azuladas e sombreadas”.
O diretor sabe como poucos colocar em evidência personagens imersos em um tempo e espaço contemporaneamente estilhaçado, mas que acaba forçosamente os unindo(os bruscos encontros em Colateral, Miami vice e Inimigos Públicos), criando um mosaico todo particular, de onde se extrai certa poesia noturna da mais intimista e mesmo abstrata dentro de uma engenharia(captada tão bem digitalmente),a princípio para lá de concreta.De uma cidade, ou de "mil cidades juntas”,literalmente de concreto.Essas obras respiram certa liberdade de experimentação em um formato de “gênero”:o filme de ação, que só tende a se enriquecer com seus métodos anuladores dos esquematismos tão presentes nesse tipo de cinema.Mann é ainda e, tanto mais hoje,uma enorme raridade.

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