quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Allenianas em tv



Dois filmes que merecem destaque na obra de Allen:Todos dizem eu te amo e o Escorpião de Jade.O Inácio Araújo,da Folha de São Paulo,disse não ter gostado desse último de primeira,mas hoje o tem em alta conta.No meu caso,desde a primeira incursão que ele sempre me encanta.
Allen realiza nesses dois filmes o que parece fazer de melhor:comédias românticas soltas, cheias de suas típicas e agudas tiradas.Em o Escorpião De Jade, as gags são incessantes, dentro de uma fluidez impressionante.Outros pontos presentes na maioria dos melhores Allens: a consciência de um tipo de cinefilia declarada, o trabalho de atmosfera que dialoga com certo lirismo das comédias românticas norte-americanas( não à toa o cancioneiro americano está sempre presente) e, no caso do primeiro filme,a comédia romântica musical.
Em Manhattan, a trilha de Gershwin pontua o conto urbano dramático e amoroso quanto às mulheres e à região da Nova York do título.Já em A Rosa Púrpura do Cairo evoca-se a Depressão Americana com o fundo do filme de Fred Astaire e Ginger Rogers(O Picolino).Seriam muitos os exemplos assemelhados a esses.
Sabe-se que Allen é um verborrágico de carteirinha, o que nos faz pensar, de certa forma, nas trepidações verbais das screwballs, comédias malucas americanas dos anos 30/40).E a elas,acrescente-se outra referência significativa:as comédias dos Irmãos Marx, com seu tom declaradamente anárquico,embora um tanto disso já possa ser vislumbrado nessas ditas comédias malucas.de Howard Hawks:A Noiva era ela,O Inventor da Mocidade( que não chega tanto a uma screwball,mas ainda mantém parte considerável do espírito)e a arquetípica Levada da Breca, sem falar, é claro, em certos trabalhos de Lubitsch, Leo McCarey e mesmo George Cukor(vide o Boêmio Encantador)...Em todos esse filmes notamos um considerável senso de certo absurdo da vida e dos amores a operar quase mesmo como uma declaração de princípios.Quanto a Groucho Marx, há em Allen também aquelas tiradas perspicazes no limite do nonsense, de aguda observação do mundo e de suas engrenagens mais corriqueiras,embora nem sempre tão visíveis.
Em Todos dizem eu te amo há delineado um estilo de movimentação de câmera que remonta aos musicais de Minnelli, sobretudo Sinfonia de Paris(tanto mais que parte do filme de Allen se passa também em Paris),com todo aquele sequêncial arranjo/desarranjo e posterior re-arranjo ultra-delicado de elementos no enquadramento,típico às pinceladas Minnellianas.
Nos dois filmes aqui em foco a captação de ambientes não é não menos que impressionante por essa capacidade de extrair dos mesmos tanta vida.Seja nos ambientes exteriores mais arejados do musical ou, em O Escorpião de Jade,que é o caso do ambiente de trabalho ou dos quartos privados(a espelunca do detetive),embora tratados também com tanto arejamento cinematográfico a um ponto em que o menos significativo coadjuvante ganhe sua imensa vida concreta.Ao final desse filme é como se lembrássemos com força de cada um deles,mesmo os desconhecendo dentro de uma maior intimidade.Há uma força impressionante nesse conjunto.
Mesmo em Todos dizem, que é um musical, as notações do considerável absurdo das coisas,das incoerências da vida típicas à ótica do diretor aparecem inseridas com toda força, mas muito bem equilibradas pelo senso lírico do “gênero” e dos ambientes(Vale lembrar que raríssimas vezes o Central Park e suas mutações de estações compareceram tão bem filmados quanto aqui, dignas de um Eric Rohmer).Mas se a filmagem estaria mais para o lírico de Minnelli ou para os ambientes do mesmo e das sutis procuras de um Rohmer,o estado de espírito se encontraria mais para o viés das incursões de Jean Renoir no gênero.Trata-se de uma obra alegre sim, mas com fortes pitadas de melancolia frente a certo despropósito do mundo.E talvez seja justamente essa incoerência da vida e do mundo que leve,juntamente a essa filtragem de cinefilia assumida,ao estado de festividade coreografada e cantada,o que viria a confirmar a semelhança com o Renoir de French Cancan.
Vale dizer também que as tiradas de Todos dizem eu te amo o tornam um dos filmes mais hilários do artista.E sobretudo que em ambas as obras percebe-se com primorosa perfeição a figura de Allen como uma espécie de síntese de Groucho Marx(não à toa, no primeiro filme todos se fantasiam do comediante em uma festa que reune todo o elenco)com os comediantes mais clássicos:Harold Loyd, pelos óculos de aro e jeitão de intelectual desarranjado;Chaplin, pela mesma condição de imigrante judeu na América precisando se afirmar e,por fim, Harry Langdon, por sua dimensão lunar,de inequívocos resíduos sonhadores.
E é justamente por esse formidável casamento de figuras a princípio tão opostas,entre o mais sardônico “realista” e o maior lirismo,embora dentro de "seu mundo" urbano cindido e neurótico ao limite,que ambas as obras se tornaram com o tempo um dos maiores destaques do diretor.Pois,nessa empatia de vozes e discursos,ele se encontra tão solto e à vontade, que poderia mesmo, como se deu de fato, se refletir na qualidade e genuinidade de seu cinema.

2 comentários:

  1. Salve, meu jovem, bem legal o texto. Dos citados, O Escorpião de Jade não gostei muito, sinceramente, mas um filme do Allen sempre tem coisa boa, de alguma forma. Já Todos Dizem eu te Amo, Manhattan e A Rosa Púrpura do Cairo eu adorei. Mas a diversidade criativa do Allen é fenomenal, ainda preciso ver alguns dos antigões que não vi. Abração

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  2. William,

    Isso não é bem um texto,apenas um longo comentário, um tipo de conversa.
    O Escorpião merece uma revisão, pode crer.São tantos filmes que revejo, alguns caem e outros crescem.Com o Inacio, da Folha,esse cresceu muito,por exemplo.Eu sempre gostei e continuo.
    Grande abraço

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