terça-feira, 29 de setembro de 2009

Mann



Se existe ainda um diretor capaz de nos surpreender em sua concepção pessoal de cinema dentro do panorama industrial, esse homem se chama Michael Mann.Mann consegue realizar um cinema experimentalista dentro do surrado gênero de ação policial como poucos.
Ele não é como Burton, um demiurgo.Seu cinema trabalha com a captação da torrente descontínua do universo urbano.Seus personagens são devorados pela personagem principal, qual seja, a selva urbana.Seus "heróis" são seres fraturados, que só têm a deixar cair sobre si os detritos de um mundo pavorosamente em descontinuidade espacial e estilhaçado.Dessa captação, surge bruscamente uma condução de tempo, que nos remete ao jazz de Charlie Parker ou Miles D.Por vezes brusco, dissonante, ou mesmo atonal .
Em “Colateral”, o herói e o vilão (vividos por Jamie Foxx e Tom Cruise, respectivamente) se misturam a ponto de chegarem a uma combinação, cujo resultado nada mais seria que um reflexo das luzes urbanas entrecortadas e filmadas por Mann.Poderíamos falar em sobras tanto quanto também em sombras,já que esses personagens refletem as fraturações desse universo urbano pós-moderno.São indivíduos deveras solitários, lançando sua ínfima “identidade” nesse mundo enorme, incomensurável.
Dessa forma, ele formula os elementos físicos da metrópole de Los Angeles (onde se perdem seus personagens)do mais concreto ao mais abstrato(sobretudo em Miami Vice),que seria na verdade sua personagem principal.Em seu cinema, as várias camadas da cidade se destacam e, inesperadamente, passam a nortear(ou bem desnortear)o fluxo dos acontecimentos:Toda uma derivação de fundo de cena que projeta um novo labirinto com ritmo todo próprio, de onde residirá a instalação de certa poesia crepuscular urbana.
Essa instalação do abstrato na selva concreta, ou vice-versa seria o resultado de um tempo de encenação que digitalmente flagra “puros” fluxos urbanos (um pouco semelhante ao Brian De Palma de “Um Tiro na Noite” ou o “Pagamento Final”) e também prima por certo improviso sonoro e visual.Não à toa em uma cena de “Colateral”, os personagens abandonam suas tarefas, a fim de apreciar e conversar sobre a execução instrumental de músicos de jazz.Essa seria uma das chaves para se adentrar mais e mais no método Michael Mann de se fazer cinema.Porém, mesmo o fato de que o frontal de cena seja contaminado pelo fundo dos enquadramentos não impede que sejamos brindados com rostos marcantes em quadros vivos,quase épicos.No entanto, quase nunca os personagens são enquadrados juntamente.Por exemplo, em Colateral há primeiramente uma espécie de abismo entre os protagonistas, mesmo que o suposto herói já tenha se misturado com o vilão.Por fim, ambos refletirão um tanto dos vários mundos da metrópole de Los Angeles, divididos a princípio, mas em estranho estado de hibridismo e ebuição.Ou seja,todo esse fluxo equivalente a um belo temporal termina por igualar um ao outro, como se vê na última e marcante cena final do metrô, mas de uma maneira que a cidade prosseguirá nela mesma, exterior a eles, a extravasar seu “balé de luzes azuladas e sombreadas”.
O diretor sabe como poucos colocar em evidência personagens imersos em um tempo e espaço contemporaneamente estilhaçado, mas que acaba forçosamente os unindo(os bruscos encontros em Colateral, Miami vice e Inimigos Públicos), criando um mosaico todo particular, de onde se extrai certa poesia noturna da mais intimista e mesmo abstrata dentro de uma engenharia(captada tão bem digitalmente),a princípio para lá de concreta.De uma cidade, ou de "mil cidades juntas”,literalmente de concreto.Essas obras respiram certa liberdade de experimentação em um formato de “gênero”:o filme de ação, que só tende a se enriquecer com seus métodos anuladores dos esquematismos tão presentes nesse tipo de cinema.Mann é ainda e, tanto mais hoje,uma enorme raridade.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Allenianas em tv



Dois filmes que merecem destaque na obra de Allen:Todos dizem eu te amo e o Escorpião de Jade.O Inácio Araújo,da Folha de São Paulo,disse não ter gostado desse último de primeira,mas hoje o tem em alta conta.No meu caso,desde a primeira incursão que ele sempre me encanta.
Allen realiza nesses dois filmes o que parece fazer de melhor:comédias românticas soltas, cheias de suas típicas e agudas tiradas.Em o Escorpião De Jade, as gags são incessantes, dentro de uma fluidez impressionante.Outros pontos presentes na maioria dos melhores Allens: a consciência de um tipo de cinefilia declarada, o trabalho de atmosfera que dialoga com certo lirismo das comédias românticas norte-americanas( não à toa o cancioneiro americano está sempre presente) e, no caso do primeiro filme,a comédia romântica musical.
Em Manhattan, a trilha de Gershwin pontua o conto urbano dramático e amoroso quanto às mulheres e à região da Nova York do título.Já em A Rosa Púrpura do Cairo evoca-se a Depressão Americana com o fundo do filme de Fred Astaire e Ginger Rogers(O Picolino).Seriam muitos os exemplos assemelhados a esses.
Sabe-se que Allen é um verborrágico de carteirinha, o que nos faz pensar, de certa forma, nas trepidações verbais das screwballs, comédias malucas americanas dos anos 30/40).E a elas,acrescente-se outra referência significativa:as comédias dos Irmãos Marx, com seu tom declaradamente anárquico,embora um tanto disso já possa ser vislumbrado nessas ditas comédias malucas.de Howard Hawks:A Noiva era ela,O Inventor da Mocidade( que não chega tanto a uma screwball,mas ainda mantém parte considerável do espírito)e a arquetípica Levada da Breca, sem falar, é claro, em certos trabalhos de Lubitsch, Leo McCarey e mesmo George Cukor(vide o Boêmio Encantador)...Em todos esse filmes notamos um considerável senso de certo absurdo da vida e dos amores a operar quase mesmo como uma declaração de princípios.Quanto a Groucho Marx, há em Allen também aquelas tiradas perspicazes no limite do nonsense, de aguda observação do mundo e de suas engrenagens mais corriqueiras,embora nem sempre tão visíveis.
Em Todos dizem eu te amo há delineado um estilo de movimentação de câmera que remonta aos musicais de Minnelli, sobretudo Sinfonia de Paris(tanto mais que parte do filme de Allen se passa também em Paris),com todo aquele sequêncial arranjo/desarranjo e posterior re-arranjo ultra-delicado de elementos no enquadramento,típico às pinceladas Minnellianas.
Nos dois filmes aqui em foco a captação de ambientes não é não menos que impressionante por essa capacidade de extrair dos mesmos tanta vida.Seja nos ambientes exteriores mais arejados do musical ou, em O Escorpião de Jade,que é o caso do ambiente de trabalho ou dos quartos privados(a espelunca do detetive),embora tratados também com tanto arejamento cinematográfico a um ponto em que o menos significativo coadjuvante ganhe sua imensa vida concreta.Ao final desse filme é como se lembrássemos com força de cada um deles,mesmo os desconhecendo dentro de uma maior intimidade.Há uma força impressionante nesse conjunto.
Mesmo em Todos dizem, que é um musical, as notações do considerável absurdo das coisas,das incoerências da vida típicas à ótica do diretor aparecem inseridas com toda força, mas muito bem equilibradas pelo senso lírico do “gênero” e dos ambientes(Vale lembrar que raríssimas vezes o Central Park e suas mutações de estações compareceram tão bem filmados quanto aqui, dignas de um Eric Rohmer).Mas se a filmagem estaria mais para o lírico de Minnelli ou para os ambientes do mesmo e das sutis procuras de um Rohmer,o estado de espírito se encontraria mais para o viés das incursões de Jean Renoir no gênero.Trata-se de uma obra alegre sim, mas com fortes pitadas de melancolia frente a certo despropósito do mundo.E talvez seja justamente essa incoerência da vida e do mundo que leve,juntamente a essa filtragem de cinefilia assumida,ao estado de festividade coreografada e cantada,o que viria a confirmar a semelhança com o Renoir de French Cancan.
Vale dizer também que as tiradas de Todos dizem eu te amo o tornam um dos filmes mais hilários do artista.E sobretudo que em ambas as obras percebe-se com primorosa perfeição a figura de Allen como uma espécie de síntese de Groucho Marx(não à toa, no primeiro filme todos se fantasiam do comediante em uma festa que reune todo o elenco)com os comediantes mais clássicos:Harold Loyd, pelos óculos de aro e jeitão de intelectual desarranjado;Chaplin, pela mesma condição de imigrante judeu na América precisando se afirmar e,por fim, Harry Langdon, por sua dimensão lunar,de inequívocos resíduos sonhadores.
E é justamente por esse formidável casamento de figuras a princípio tão opostas,entre o mais sardônico “realista” e o maior lirismo,embora dentro de "seu mundo" urbano cindido e neurótico ao limite,que ambas as obras se tornaram com o tempo um dos maiores destaques do diretor.Pois,nessa empatia de vozes e discursos,ele se encontra tão solto e à vontade, que poderia mesmo, como se deu de fato, se refletir na qualidade e genuinidade de seu cinema.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Fotos de Ordet(Dreyer)e O Eclipse(Antonioni)



Termos como "incomunicabilidade" viraram, durante um tempo, quase uma moda(no cinema, sobretudo quando se tratava de Antonioni).
No caso de Drummond,acrescentaríamos aporia.O eu todo retorcido descobre que essa seria uma condição mais ampla do que um mero "sentimento de mundo", auto-centrado em demasia.(Embora muitos não percebam).
Em O Eclipse,de Antonioni, o frêmito surdo-mudo se converte em grito particular "com os objetos",nesse encontro milagroso da dimensão objetiva com a subjetiva,o que catalizaria o dito eclipse do título.
Em Ordet( A Palavra),de Carl Dreyer, o Verbo se faz literalmente carne.Mas é preciso um suposto "louco" e uma criança para romperem essa crosta até mesmo material,esse abismo de ressecamento de homens para consigo próprios, ou para com os demais.Observe a ausência de uma abertura na interpretação dos atores.
Proferir em estado de entrega e convicção é o que constituirá a "Palavra-grito"do título,desencadeadora de novos estados geológicos da matéria,dentro de uma ausência de dicotomia espírito/matéria.
O Verbo faz a drenagem.Como no início era o Verbo:faz-se o Mundo.

Canto Órfico


A dança já não soa,
a música deixou de ser palavra,
o cântico se alongou do movimento.
Orfeu, dividido, anda à procura
dessa unidade áurea, que perdemos.


Mundo desintegrado, tua essência
paira talvez na luz, mas neutra aos olhos
desaprendidos de ver; e sob a pele,
que turva imporosidade nos limita?
De ti a ti, abismo; e nele, os ecos
de uma prístina ciência, agora exangue.


Nem tua cifra sabemos; nem captá-la
dera poder de penetrar. Erra o mistério
em torno de seu núcleo. E restam poucos
encantamentos válidos. Talvez
um só e grave: tua ausência
ainda retumba em nós, e estremecemos
que uma perda se forma desses ganhos.


Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe,
braços do não-saber. Ó fabuloso
mudo paralítico surdo nato incógnito
na raiz da manhã que tarda, e tarde,
quando a linha do céu em nós se esfuma,
tornando-nos estrangeiros mais que estranhos.


No duelo das horas tua imagem
atravessa membranas sem que a sorte
se decida a escolher. As artes pétreas
recolhem-se a seus tardos movimentos.
Em vão: elas não podem.
Amplo,
vazio
um espaço estelar espreita os signos
que se farão doçura, convivência,
espanto de existir, e mão completa
caminhando surpresa noutro corpo.



A música se embala no possível,
no finito redondo, em que se crispa
uma agonia moderna. O canto é branco,
foge a si mesmo, vôos! palmas lentas
sobre o oceano estático: balanço
de anca terrestre, certa de morrer.



Orfeu, reúne-te! chama teus dispersos
e comovidos membros naturais,
e límpido reinaugura
o ritmo suficiente, que, nostálgico,
na nervura das folhas se limita,
quando não compõe no ar, que é todo frêmito,
uma espera de fustes, assombrada.



Orfeu, dá-nos teu número
de ouro, entre aparências
que vão do vão granito à linfa irônica.
Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa
atmosfera do verso antes do canto,
do verso universo, latejante,
no primeiro silêncio,
promessa de homem, contorno ainda improvável
de deuses a nascer, clara suspeita
de luz no céu sem pássaros,
vazio musical a ser povoado
pelo olhar da sibila, circunspecto.



Orfeu, que te chamamos, baixa ao tempo
e escuta:
só de ousar-se teu nome, já respira
a rosa trimegista, aberta ao mundo.


(Carlos Drummond de Andrade, ombreando Eliot).

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Ah, o PS?

O Ps do Planeta dos Macacos:
Ps. O expressionismo originário previu a psicopatia de regimes autoritários como o nazismo que, por sua vez,se vinculava intimamente a uma deusa ciência, do "progresso"(como nessa obra em que o clima vai incorporando, por entre as frechas de uma superprodução, um verdadeiro pesadelo destilado).
Durante o filme que tanto aturdiu, muitos norte-americanos fugiram dos cinemas.Mas, tal como em muitas obras expressionistas, bastava acordar ao final.

domingo, 13 de setembro de 2009

Exuberância( foto de Edward mãos de tesoura)



Edward carrega o excesso(tesouras exóticas)e as faltas(da América)como resultado de uma fissura que provocou ausência(de mãos).Alegoricamente como uma falta maior, de uma nação.
Aqui,aquilo que não estava pronto e que pode gerar cortes, destruição(Thanatos) também se refaz, se(re)constrói como luz criativa.Nesse claro e escuro de uma gótica nação,a criação opera elemento de resistência e exuberância de vida.
Lindo parto, do escuro fetal(cavernoso) ao claro.

A Nova Seita



Em o Planeta das Macacos, a superprodução opera como reverso de Tanatos.
Se o puritanismo da velha América destilava veneno mortal,aqui na supra-tecnologização de um mundo, um deus se erige ao final, hieraticamente, sob formato de estátua,petrificação:
Esse novo deus não é mais Lincoln, nem tampouco o judaico-cristão.
Trata-se do outro lado da guerra do "progresso",como internalização tardia de uma nova espécie de Ku Klux Klan,de roupagem blindada e super-equipada.
Afinal, o deus dessa América, segundo Burton é, na verdade,Thanatos,Deus da Morte.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A Gravidade da infância,onde estará?





Decidi passar A Fantástica Fábrica de Chocolates para meus alunos.Alguns questionam:pra que uma refilmagem?
Primeiro:Tim Burton é um recriador e ele nunca mimetiza algo.Seus Batmans não são fiéis aos gibis, no que está a força dos filmes.É fiel,antes,ao cinema de autor.Cinema de fábulas invertidas.Um verdadeiro criador de mundos(um demiurgo,por fim).
Seu Batman pode até parecer um tanto ínfimo frente aos demais aspectos.Claro, o que importa é a vida/morte de uma cidade,Gothan City, moldada como mundo alegórico de vida moderna ou pós-moderna.Por isso ela se constitui como arquitetuta gótica.A Mulher-Gato bate de frente com o Batman por razões,fricções eróticas devido à semelhança entre esses seres tão à margem.E o poder de sedução dela advém de assumir aquilo que ele prefere conter como fajuto em sua roupagem de super-herói,protetor de uma cidade.Ela é a escancaração de seu lado sombra,em versão ninfomaníaco-demente.Só que carrega com honestidade essa sexualidade difícil,"pesada",enquanto Batman prefere se refugiar em um tipo específico de politicagem correta.
Burton, em sua ânsia pela recriação, deu também vida "completa",autônoma à Ed Wood.Tornou Edward mãos de tesoura,que carrega consigo o excesso e a falta, um recriador das casas estandardizadas da América do Norte.Continuamos aqui, em todo caso,com os vestígios das alegoria do Batman.Largos excessos são, em outros moldes, a outra face espelhada das largas faltas de um país.
Em Planeta dos Macacos ele investe novamente na recriação, centrando fogo nesse mundo onde progresso tecnológico e belicismo, novamente os excessos e as faltas, se dão as mãos como cordas interdependentes de um mesmo "Planeta"(novamente alegorizado)".Raras vezes uma superprodução, um espetáculo puxou o tapete de seu público com tamanha contundência e convicção,evocando ondas de indignação na "nova-velha América",já antecipando as faltas(excessivas)dos "Bushismos" de praxe.É seu filme de horror,por excelência, mais assustador que qualquer coisa que já tenha feito. Alguma outra vez o teor gótico-expressionista chegara a comparecer com tamanha precisão quanto nessa "fábula político-cultural"?
Como não há tempo,voltemos à Fábrica.Seu filme é infinitamente mais bem encenado que o original.E ainda opta por uma genial recriação das coreografias e cenários de Busby Berkeley,o mestre dos movimento caleidoscópicos dos musicais clássicos, quando das cenas com os ajudantes de Johnny Depp na conclusão dos jogos em que cada boçal garoto se arremessava.Outra evocação direta:Escola de Sereias, de George Sidney,em que se reformula, em caudas de chocolates, os nados sincronizados de Esther Williams e trupe(aqui representados por "homens-anãos")que, por sua vez,à época já davam continuidade aos caleidoscópios do mesmo Berkeley.Poucas vezes o flerte com certo freak compareceu de forma tão refinada e requintada quanto nessa fábula musical.
Mas creio que o ponto em que mais incomoda está nessa capacidade que Burton tem de ser "tão parte de seu tempo" e com tamanha lucidez.Afinal,essa obra evoca a todo o tempo a morte da infância.Daí,essa evocação desses musicais ao longe,cada vez mais improváveis, para uma adolescência aborrecente antecipada como em um flash. Talvez venha também daí o diálogo com certo tom atomizado da montagem.
O próprio adulto etário muita das vezes não passa de um adolescente otário.Pode-se falar em fenômeno do infantilismo.Mas o melhor seria chamar talvez "adolescentismo permanente", ou quase. A Fantástica Fábrica é um filme que aborda a infância, mas o supremo horror está em que nela não parece haver quase infância alguma.Fica-se sempre por um triz, já que o próprio protagonista adulto é também alguém constituído por uma infância abortada.Somente aquele que vence a brincadeira é que,na verdade,carrega consigo certa delícia e gravidade desse estado de ser e estar no mundo,,sendo uma exceção naquele mundo.E o próprio J.Depp se (re)iniciará em algo catalizado pela fricção com esse "último dos meninos".
Tim Burton é um dos únicos diretores a ainda bater nas teclas de um mundo adolescente em demasia, usando ironicamente essa que é uma das maiores armas do adolescentismo disseminado como ditadura da maioria: o filme industrial.O outro,claro,é M.Night Shyamalan,a questionar o lugar das ficções, das crenças que elas implicariam em um mundo que se esqueceu delas,que as trataria caducamente como algo "pequeno", ingênuo ou passadista.Ou seja,um mundo que talvez tenha se esquecido de "si mesmo".
Assistir a esse trabalho e ao último Shyamalan é como comprovar o que essas ficções fabulares carregam de "necessário" diálogo com nossos tempos,sem nenhum pingo de tola ingenuidade.A Fantástica Fábrica,que é o que importa nesse comentário,é um trabalho de um mago de marca maior.De um dos sobreviventes desse tipo de magia que,quanto mais se afirma como ficção/fricção(aqui vale o trocadilho analógico),maior o discurso de grave lucidez do adulto/criança.Tamanha lucidez só poderia se dar mesmo no limite do inebriante.
A.C.

"Se depois de um dia a gente descobre que suas ocupações são mesquinhas e suas profissões petrificadas, sem nenhuma relação com a vida, por que não voltar a olhá-los outra vez como uma criança olha para uma coisa estranha, do âmago de seu mundo...,que é, por si só, trabalho, dignidade e profissão?"
(Rainer Maria Rilke).

quarta-feira, 9 de setembro de 2009





Da vez que pude ver A Fantástica Fábrica de Chocolates no cinema daqui foi uma baita decepção:Filme dublado.Parecia que estava em casa assistindo à sessão da tarde.Corte.
Por esses dias tive a oportunidade de ver por essas plagas roceiras o último Michael Mann.Ao contrário da péssima projeção do extrordinário Gran Torino(talvez o melhor Clint Eastwood junto a Um Mundo Perfeito),Inimigos Públicos apresentou uma projeção de incontestável qualidade.Tá certo que não é tão bom quanto o do Clint( a meu ver nem lambe suas botas),mas é de de Michael Mann e desse cara não se pode dizer que não tenha classe(esse tipo de classe tão ausente no cinema industrial de hoje).Seu filme não me pareceu tão bom quanto os anteriores.E aqui ele opta menos pela exuberância visual do caos metropolitano(fundos de cenas se projetando e se confundindo com a frente)que em outros de seus trabalhos.
Inimigos Públicos é feito bem dentro do espírito de urgência: urgência de viver e de filmar,o que evoca muitas vezes certo desespero(alguém aí se lembra de Miami Vice?).Mas agora, ao contrário do filme anterior,as coisas se dão bem mais "secamente":tal como nos títulos dos filmes de Cassavetes(Shadows,Faces),o que vemos muita das vezes não passa de uma oscilação ou de uma suplementação de puras sombras e de puros rostos como em um único jôrro, de uma maneira quase tátil.
Com essas premissas pouco essencialistas,Cassavetes ainda assim e,por fim,nos dava filmes de grande "soul",alma(palavra um tanto fora de moda para certos dogmas,padrões das "pós-modernices").Michael Mann não chega tão longe quanto, por exemplo,em Miami Vice,mas essa sua coragem de estar sempre tão frontalmente quanto entre as próprias coisas,à frente mesmo de seu próprio representar(ao menos,na maioria das vezes),já o torna um caso sui gêneris do cinema norte-americano de nossos tempos.
O fato é que depois da decepção da sessão do Tim Burton, decidi por revê-lo agora em melhores condições:abaixo as dublagens.E o filme surpreendentemente se apresenta como um de seus melhores,levando à cabo algo que já se anunciava em Peixe Grande.
Trata-se de uma obra de construções extremamente argutas de atmosferas e mesmo de cenas,apesar de uma montagem algo atomizada.Raramente Tim Burton foi tão crítico e ao mesmo tempo tão generoso em cada tomada. É como se disesse a cada momento "isso é uma "blague" cáustica sim, mas tudo para o próprio bem de todos nós, pais, filhos e artistas".
Sem rastros de demagogia. Acertar as contas com o tempo contemporâneo e seus vícios(os videogames e tvs excessivos/permissivos como mitos atuais, garotos mimados,a cultura do Ter precedendo sempre o Ser,garotos sem nenhuma autonomia querendo "dar as ordens",etc, como modelo fascista para moleques "bebês",...)equivale também a acertar as contas consigo mesmo.
Esse filme evocará que o mesmo Johnny Depp/Tim Burton não estará alheio aos processos de iniciação/(re)aprendizagem construídos inicialmente sob o formato de um grande parque de diversões(com direito tanto ao clownesco, como a certo horror das "salas"),como se tudo fosse parte de um mesmo complexo/imbróglio.Johnny D,o criador da Fábrica,terá também,por fim, de se reiniciar por completo na criança que deixara de ser.
O final desse filme conciso, atmosférico e brilhante lembra um pouco, pela gravidade e humor nonsense,o também grave e bem humorado Ratatouille,talvez a mais audaciosa animação da Disney,por esse tom a um tempo de aquiescência consigo próprio em um grupo e por esse estar sempre "à margem" no ser e no acreditar,pagando o preço necessário por suas convicções(aqui um tanto achocolatadas).Voltar na íntegra a ser criança, nesse caso, é como vivenciar uma presentificação do passado redivivo,que se abrirá, então,para novos tempos/direções.Trata-se de um certo tipo de infância que, paradoxalmente, se igualará a certo grau de maturação.É assim que essa obra se fechará,delirante e singelamente a nossos olhos.

sábado, 5 de setembro de 2009



Nesse período de limiar do nascimento da minha filha até sua bem definida chegada ao mundo(faz uns 4 meses, aliás que dia do mês é hoje?), meu pendor diletante foi um tanto sacrificado e acabei perdendo alguns shows de peso:Milton com os músicos de jazz foi um. Agora é a vez de mais um do mesmo Milton...Engraçado que não vejo muita relação entre ele e a Rita Lee, que estará em Três Pontas também e me parece que no mesmo dia.E isso me consola um pouco.Não consigo me agradar muito desses eventos com vários artistas a entulhar o palco, muitas vezes sem muita relação entre um e outro.
O outro show que irei perder será o do Tony Bennett em BH.TB é um desses artistas que eu não levava muito à sério em meu período de adolescência/aborrecente(talvez eu fosse metido à "pra frentex", que morava na casa do rock/pop, essas bobagens...).
Tony Bennett em seus melhores momentos é a vocalização translúcida e também encorpada, com grande domínio de ritmo e respiração, sempre com essa sabedoria dos grandes intérpretes em saber deslocar sutilmente as mordaças melódicas.Não que ele não valorize o melódico. Mas, um tanto distinto da maneira Sinatra de cantar,,Bennett parece por vezes "se apagar", buscando uma espécie de "neutralidade"na interpretação,de maneira que a força da música cresça intensamente nele,a partir da generosidade modesta de sua suposta anulação.Lógico que toda essa aparente anulação é perfeitamente calculada e sua atitude de intérprete acaba por tornar a música extremamente viva e sui gêneris, elegante, como se ela já nascesse com sua limpidez elevada à enésima potência.
Da mesma maneira que existe o "corte invisível" no cinema, existe o "corte invisível" em Tony Bennett, que canta como se a própria canção contivesse em sua imanência todas essas qualidades que ele destaca.Ou seja, sua arte consiste em não deixar perceber o que há de tão "artístico"na particularidade de sua interpretação, o que houve de esforço,etc...E tudo parece tão simples e "natural"tanto quanto Fred Astaire sapateando que, em ambos os casos, chega-se a antever mesmo um sobrepairar flutuante de seus corpos ou vozes.Parece fácil?Ledo engano.
Que venha o último Príncipe dessas gerações.Quantos aos segredos dessa arte, seria melhor que ele contasse tudo agora, antes de finalmente partir( de uma vez por todas).

Godard/Murilo Mendes




Mapa

Me colaram no tempo, me puseram
Uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
Limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
A leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
Depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
Me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
Gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
Alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
Nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
Tonto de vidas, de chriros, de movimentos, de pensamentos,
Não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
É por isso que sai às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
Depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
Na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
Presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
O mundo vai mudar a cara,
A morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
Me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
Na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
Vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
O vento que vem da eternidade suspenderá os passos
Dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
Vibrarei nos canjerês do mar, abraçarei as almas no ar,
Me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
Os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
Aos soldados que perderam a batalha, às mães bem mães,
As fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
Viva eu que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
Dos amores raros que tive,
Vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
Tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
Estou no ar,
Na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
No meu quarto modesto da praia de Botafogo,
No pensamento dos homens que movem o mundo,
Nem triste, nem alegre, chama com dois olhos andando,
Sempre em transformação.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009


(Foto de Bill e Scarlett no entre-lugar em que ocupam seus corpos no filme de Sofia Coppola)




Como havia visto os fragmentos do Lost in Translation(Encontros e Desencontros) na tv, decidi por abarcá-lo na íntegra ontem e, para minha feliz surpresa, os insights por mim transcritos aqui foram confirmados. Só que ao título socrático :"a verdade se encontra entre os homens" poderia ser substituído ou suplementado :"o pleno se encontra entre os homens", quando bem procurado(diga-se).
Ou seja, é nessa dimensão de aparente opacidade escolhida por Sofia Coppola para assestar suas lentes que deverá brotar alguma fagulha de uma certa plenitude.Para tanto, a diretora é obstinada, se colocando sempre entre as coisas, entre os seres, em contínuos intervalos, em princípio com essa postura cujo tateamento pode remeter à própria errância de seus protagonistas.
Lost in Translation, filme feito de momentos de digressão,de tateamentos do existir,da afasia dos interstícios é feito de uma calma impressionante, sempre disposto a esperar o momento certo para que algo desabroche em meio à opacidade da civilização contemporânea do "pós-tudo". Japão,USA, Brasil, que diferença tudo isso faz, afinal? O importante é não trapacear com esses estados de embaçamento,de "inócua" opacidade, pois são deles, paradoxalmente, que algo irá brotar.O filme é, antes de tudo, a história de um nascimento.E não se nasce assim, de uma hora para outra.Mais do que o indicado por uma história, por um enredo, busca-se sempre o nascimento de uma imagem, nesse contínuo estágio de se estar sempre entre o amorfo e a forma,entre o vazio(opaco)e o pleno,já que(nessa obra,ao menos)um somente poderá brotar do outro e pelo outro.
Para Sofia cabe entender que é justamente dessa "vazia opacidade" que o pleno, em suas dobras insuspeitas,se mostrará. Para tanto, primeiramente deve-se aceitar o inócuo aparente e permitir uma abertura para os "tempos mortos" possíveis, deixando a imagem irromper como súbita fulminância justo nos momentos em que ela mais parece se calar.
S.Coppola lança mão dos recursos dos cinemas oriental e europeu, deslocando sempre com extrema desinibição uma aparente moldura de filme norte-americano.O andamento é imensamente respeitoso para com esse tatetar dos protagonistas, bem como nas propositais lacunas temporais de um Bill Murray, que esse artista saberá preencher com os inesgotáveis recursos de um grande ator, até o momento final em que pedirá para o carro parar a fim de descer para cochichar algo ao ouvido da protagonista. Agora sim,ele poderá partir com a sensação de dever cumprido,de uma experiência finalmente consumada. E é nesse final que a configuração da imagem de Tóquio se tornará outra.Essa experiência, em princípio alheia a essas "personas", foi finalmente consumada,bem absorvida ao cabo da jornada, tanto por Bill e Scarlett como por, principalmente, Sofia Coppola. A aporia do eterno entre-lugar dos protagonistas passa agora, abruptamente, à moradia talvez perpétua do ser como em súbita e "ilógica" fábula. A mais ousada moradia de S. Coppola no cinema até hoje.Dever cumprido.

Rossellini/Eliot



"Em um país de fugitivos, aqueles que andam na direção contrária parecem estar fugindo."
(T.S.Eliot)
Foto da obra-prima Europa 51, de Roberto Rossellini.