A CARTA / La Lettre (1999), de Manoel de Oliveira
Maior será o equívoco a colocar de lado o magnífico A Carta, que não é um dos filmes mais marcantes do ano apenas porque o é da década.
Oliveira detém-se ali na malfadada história de am or entre uma aristocrata francesa, a Mme. de Clèves, e um roqueiro português, Pedro Abrunhosa.
A audácia temática talvez fique mais clara se lembrarmos que Oliveira não liga dois mundos distantes (o da aristocracia e o do pop), mas dois séculos distantes: o XVII e o XX.
Pois o XVII é o século de Princesa de
Clèves, romance sobre uma mulher que se casa sem amor com um homem que
muito respeita (exatamente como a personagem de A Carta).
Oliveira não faz nenhum esforço para atualizar o mundo de Mme. de Clèves. ....
Oliveira não faz nenhum esforço para atualizar o mundo de Mme. de Clèves. ....
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Bastaria essa contradição para deixar os espectadores com olhos e ouvidos abertos. Pois Oliveira faz com que dois mundos – um extinto, ao menos teoricamente – convivam no mesmo espaço e no mesmo tempo.
Essa sensação de estranheza que qualquer espectador sentirá, com razão, ao ver o filme, prolonga-se na curiosa figura de Abrunhosa, o roqueiro, que também se apaixona pela mulher e se vê carregado por essa circunstância a um outro século.
Haverá quem pergunte: e daí? Daí que todo o nosso mundo de fim da História vê-se subitamente abalado pela constatação de que o presente e o passado mantêm entre si relações mais curiosas e profundas do que imaginamos habitualmente.
Ao proceder a essa torção sutil do tempo, Oliveira não mistura dois mundos e duas épocas perfeitamente diferentes, dois modos de sentir e experimentar as coisas, mas subverte a noção de tempo, permitindo-lhes conviver num mesmo espaço – que não é o da Paris contemporânea propriamente, mas o do filme.
Um artifício que lhe permite refletir sobre o que, na vida, é mutável e imutável. Não somos seres simples. O solo em que pisamos é formado de muitas camadas, que se vão acumulando. Seria insuportável pensar que a última – o rock, no caso
– devora e destrói todas as demais. Em cada um de nós existe um lado Abrunhosa e um lado Clèves. Cada ocidental carrega em si essa carga contraditória, composta pelos vários momentos de sua história e de seu pensamento. Esse é o fundamento profundamente realista do filme, em que o arbitrário irrompe com toda força, apenas para chegar com mais força e evidência à demonstração de uma verdade profunda."
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