segunda-feira, 5 de abril de 2010








Miami Vice apresenta uma montagem original do começo ao fim, como a que comparece no desenrolar de Colateral. Jogos de ângulos a compor um labirinto urbano pós-moderno.

Colateral pode parecer, por certos pontos, mais direto, ao passo que Miami Vice vai se insinuando aos poucos, do abstrato ao concreto, para retornar à abstração - no último momento, não vemos mais o rosto do protagonista - como sugere e atesta sua sinuosa montagem. E, por esse lado, seria oblíquo.

Michel Mann faz um tanto como Howard Hawks. Abaixa o tom de sua narrativa, de maneira que, enquanto a dramaturgia cria seu ruído próprio de ação - afinal, tratar-se-ia de um policial-, o essencial se encontrará, de fato, no subsolo de cena.

Mais para o início, quando o policial negro se entrelaça com sua namorada durante e após um banho, teríamos apenas um breve tira gosto do que seria a extensão do sensorial no filme. Cinema tátil, mas como forma de buscar a alma dos indivíduos e dos acontecimentos.

Teremos, afinal, uma espécie de ensaio fenomenológico sobre as agruras da máquina do dever policial, primeiramente, de sua trágica condição. A câmera oscilará, sem alardes videoclípticos, em torno de seu eixo, dos rostos e das cenas, pois haverá um frêmito contemporâneo a ser captado, a tornar-se aparente. E se o andamento das cenas é bem dinâmico, saberemos que os amores talvez sejam instantâneos, próprio de um tempo fugaz e, talvez, improvável.

Para compensar esse estado de coisas, do tempo, a cena do combate final funcionará como um duelo de um western de San Peckinpach, lentamente coreografada. Ou seja, o que, em um policial convencional, seria o ápice do filme é empregado com rebaixamento de tom, com a sonoridade dos tiros sendo trabalhada como música lenta, ou seja, de forma decomposta como o movimento das imagens.

Esse tipo de mutismo é toda uma operação fundamental do filme, pois se existem muitas falas e dinâmica na montagem, essas mesmas carregam uma destacada qualidade de abstração, já que o relevante se encontra mesmo no interior do movimento, no subsolo do plano. E, diante disso e das implicações existenciais, éticas e mesmo trágicas da máquina moderna ou pós-moderna, estaremos distantes do espírito de fôrma ou de tese de filmes descararadamente políticos.

É que, no fundo, Miami Vice é mais simples do que parece. Trata-se de um “filme de amor”. A rigor, de amores. De um policial negro que quase perde sua namorada por duas vezes e de um policial branco que, definitivamente, perde sua executiva, pertencente ao “outro lado”. Sabendo que essa moça oriental teria se envolvido há tempos com o negócio de contrabando de drogas por um tipo de fatalidade, trata-se de um casal composto por seres semelhantes, porém, de lados opostos.

São angústias mudas que se desenham como paralelas dos tons mais altos, cujo segredo estará em saber filmar a intensidade dos encontros e desencontros por meio de um laconismo vigoroso, com o mais ficando por conta do extra campo e do espectador.

Ao fim, teremos aquele policial negro entrelaçado à sua namorada em coma. O momento não é casual, como poderia parecer o do início no chuveiro, implicando uma rara conexão pelo sensorial a de despertada. No caso do protagonista branco com a oriental, o entrelaçamento ocorrido pouco antes da despedida final implicará mútua absorção, mas com a conexão se rachando fisicamente ao meio.

Cineasta de “identidades forjadas” (expressão do filme), de estilhaços pós-modernos, a filmar rostos no vácuo ou entrelaçamentos, usando o físico e o subsolo de cena para se chegar à alma, por meio de um movimento contínuo de rebaixamento de tom em sua narrativa, Michael Mann, em Miami Vice, talvez tenha feito sua obra-prima.

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