quarta-feira, 31 de março de 2010





Revendo uma sequência surpreendente: O Anjo Exterminador, Bonequinha de luxo e Colateral. O primeiro, entre os filmes que já mais chamaram a atenção enquanto recursos empregados da linguagem cinematográfica.

A rigor, um experimento do cineasta espanhol Luis Buñuel em torno de burgueses trancafiados em uma casa. Os cortes e a câmera vão acompanhando esses vai e vens de seres que se debatem como em uma gaiola, um pouco como Os Pássaros,de Hitchcock.


Mas se aqui há algum tipo de purgação, como no caso do filme do mestre do suspense, essa se encontraria no momento em que, por fome, os personagens chegam a sacrificar as ovelhas da dona da casa, enquanto as falas vão afirmando que ainda faltaria muito para se chegar à ovelha pura. Ou seja, para o cineasta, por mais que se tente purgá-las, as elites parecem não escapar de seu próprio eixo.


Nesse ambiente de prisão, com cada qual aliado à sua mania, soberba e chaga, podemos entrever, pela montagem e movimentação de câmera empregadas, a condução em espiral de um outro filme seu, O Alucinado,em que, se passando em um ambiente também composto por abóbadas e reentrâncias tipicamente barrocas,o protagonista, paulatina e inconscientemente, estará se devorando a si mesmo de forma crescente.Ambos filmes que se tornam mais claustrofóbicos em seu desenrolar, embora, de certa maneira, compensados pelo senso de humor do cineasta.

Obras de aparência clássica que, aos poucos, vão se revelando possuídas por um timbre espanhol nada distante da pintura de um Rembrand e,principalmente, de um Velásquez, por seu provocativo descentramento.Continuadoras de uma herança e de um estado de espírito de um barroco espanhol,mais afeito aos círculos do que às retas.
Ao acompanhar essas reentrâncias de espaço foi preciso suspender o sentido mecânico do tempo, transformando-o em um grande presente perpétuo, alucinatório, de forma que os seres não tanto recorressem a seus jogos representativos de cartas marcadas. Teríamos, agora, personagens acuados pelo instante distendido ou pelo fantasma da morte- habitualmente escamoteados pela pompa de "respeitabilidade" no cotidiano da classe.Buñuel revela-se aqui em exímio domínio de sua arte. Virtuosístico,mas sem alarde,como o Renoir de A Regra do Jogo.


Já o filme de Michael Mann cresceu. Os pontos mais altos se encontram no prólogo e no epílogo. Quando recorre mais à dramaturgia, seu filme parece menos interessante. Nas construções de atmosferas é que ganha sua força.

De início, temos a poesia urbana, com suas muitas vistas a passear por ali, entrevistas por meio do retrovisor de um carro, a refletir um grande painel metropolitano, composto tanto por uma dimensão de sonho acordado, quanto pela de isolamento, solidão e prisão na selva.

Haverá, diante disso, o espaço para um mosaico de acompanhamento musical, que vai desde a música erudita, passando pelo pop até o jazz, conforme o filme vai se desenvolvendo, com a noite se tornando madrugada e a poesia urbana se fazendo evidentemente crepuscular. Momento em que trilha e imagens remeterão a mudas reflexões.


Ao final, à medida que o filme ganha mais fôlego, Mann faz com que sua câmera busque vários tipos de ângulos a um só tempo, construindo um verdadeiro labirinto vitrificado, de concreto, em que os desencontros urbanos passam a ser projetados em um âmbito mais individualizado, nessa busca por ar ou libertação.


É preciso sempre correr mais, fugindo ou buscando, um tanto como em O Pagamento Final, de Brian De Palma,cujo desfecho se passa também em um metrô.Será possível não somente observar a relação do cinema com a música, como tornar a respiração de cada rosto decisiva em suas implicações meditativas, com o recurso digital a intensificar a condição sensorial e mesmo tátil desse cinema.
Em termos de história, saberemos que o vilão Tom Cruise foi alguém privado de sonhos, tornando-se um robô programado na selva. Já para o protagonista, trata-se de ser ou não ser sugado por essa possibilidade. Dilemas desenhados digitalmente em uma cenografia pós-moderna, na qual os riscos da alienação do desejo e da morte da consciência, nessa provação de aventura policial, se fazem enormes.


Prolongando, de certa maneira, um grande filme de De Palma, inserindo-o em um contexto metropolitano mais atual,Colateral só tende a crescer.

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