domingo, 9 de maio de 2010

Ilha do Medo em debate






A dimensão alucinatória nos filmes de Scorsese não representa bem uma novidade.

Ao final de Taxi Driver não sabemos se a fama do protagonista por ter salvo uma moça da prostituição-o destaque dado a ele como herói em um órgão da imprensa,ou o reconhecimento dado pela família da ex-prostituta-seria ou não mais uma obsessão de sua mente.

O humorista pífio de O Rei da Comédia encena o tempo todo para si e para os demais.Vive no proscênio,leia-se: no delírio-a um ponto em que acredita nas mentiras que cria,que seu ídolo quer mesmo recebê-lo,que é amigo de várias celebridades,...Ao final, quando teria conquistado a fama,a cena é filmada como as demais de "loucura",com um toque de onirismo irônico,crítico, que não nos obriga a crer piamente no que vemos.

O Cristo do diretor em A Última Tentação parece ir na contramão do que sugeriu seus detratores ortodoxos.Deliraria mesmo quando crê que poderia ser um homem de família,etc até um momento em que cai em si para voltar à cruz.Mais um projeto esquizofrênico em que se confundem amor e guerra/ódio, demônio e anjo em uma aparição feminina, supostamente graciosa de uma ente espiritual.

Em O Aviador a preocupação não é com Howard Huges,o suposto biografado,como muitas vezes foi (mal) compreendido,mas com um visionário-um artista?- que, ao mesmo tempo que é pioneiro, abrindo caminho com suas visões, ao procurar submetê-las à matéria,corre o risco de ser sugado pelas mesmas,tornando-se uma espécie de autista,trancafiado em suas prisões."The way of the future" é a frase recorrente nesse épico experiemental.Gênio ou louco?Demente e gênio.Espírito,idéias e matéria-riscos a correr.

Já em A Ilha do Medo,o diretor fez com que a operação fundamental de parte considerável de sua obra ganhasse um acréscimo expressionista em luzes,cenários,dramatizações,com as cisões sendo explicitadas,sobretudo quando nos aproximarmos mais do final, como clareza de proposta.
Tratou-se de pegar, consciente ou inconscientemente, um histórico desses filmes citados,de suas obsessões de subtexto, oferecendo uma obra de cunho mais explícito,conceitual.O tempo dirá se,de fato, um trunfo ou uma danação.


Fábio Andrade,da cinética disse:



" Quando entramos na ilha, Scorsese nos instala na mente de seu protagonista. O nível dessa exclusividade enunciadora, porém, só será revelado bem adiante – o que faz da fruição do filme uma releitura de si mesma. Ilha do Medo existe todo em função desse recuo de ponto de vista, que é o momento exato em que nossas expectativas são desmontadas, e somos reapresentados ao filme que assistíamos. A câmera, aprendemos, nunca se separou de Teddy (Leonardo DiCaprio); é seu olhar que determinara toda a encenação – seja na maneira como um fósforo riscado ilumina magicamente toda uma cela, ou no fragilíssimo simbolismo que traz de volta a lembrança da mulher, com golpes delicados de superexposição e uma estilização de cena francamente banal. Há algo de escroque nessa quebra de fidelidade, que lava suas mãos de uma encenação quase sempre ineficaz, onde cada ilustração se justifica pela loucura de uma personagem.
Se vemos em tela uma série de recursos de dramaturgia que beiram o primário, esse recuo empurra sua responsabilidade diegética para uma das personagens. O filme é primário pois a auto-dramaturgia da imaginação de seu protagonista assim o determina. Neste momento, a câmera é capaz de abandoná-lo, de olhá-lo criticamente de uma posição externa que aparecia no filme apenas em breves lampejos (a cena em que uma das pacientes bebe água sem um copo, por exemplo – ainda assim, cena enigmática demais para configurar um distanciamento de fato). O que há de realmente problemático em filmes que partem dessa necessidade de um “golpe” no espectador, é que toda sua realização se transforma em escamoteamento – uma vez que o diretor sabe de algo que não podemos saber antes da hora. É preciso despistar o espectador, alimentá-lo de pistas falsas para, ao final, afirmar a soberania da instância enunciadora em uma sequência explicativa (algo que é tão problemático aqui quanto em um Amnésia, ou na sequência final do Psicose original, por exemplo). Em contraponto, tudo que precisa ser explicado não pode admitir qualquer ambiguidade – limite que tem seu exemplo mais gritante na caminhada final pelo jardim do hospital de um enfermeiro, carregando os instrumentos para a lobotomia quando vai buscar o protagonista.
A sobrevivência de filmes como esses depende do quanto esse escamoteamento pode ser envolvente em si mesmo e do quanto o golpe explicativo ainda suporta de ambiguidade – primazias das quais Scorsese abre mão ao se irmanar indistintamente à visão torpe e compensatória de sua personagem, trocando os prazeres de construção do próprio filme por uma fidelidade conceitual. São filmes difíceis de se criticar, pois todas as brechas de sua encenação estão devidamente protegidas por seu arcabouço conceitual. Só a crítica política é possível. Ao fim, Ilha do Medo faz um mesmo movimento de afirmação enunciadora que Um Homem Sério (nos Coen, ponto de partida; aqui, de chegada), mas que acaba produzindo um sentido reverso: reafirmar a autonomia da instância enunciadora. Mas lá, onde havia transparência, agora há encobrimento. É revelador, portanto, que a personagem principal opte, ao fim, por sustentar-se em uma mentira, mesmo que ela a leve à “morte” – ou, como escreve Slavoj Zizek a respeito de O Cavaleiro das Trevas, “A Mentira precisa ser elevada a Verdade”. Foi ela, afinal, o valor determinante da lógica regente de todo o filme."

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