quarta-feira, 19 de maio de 2010

O lúdico hoje no cinema (algumas considerações)



No blog do Sérgio Alpendre (chiphazard) retomou-se uma discussão em torno da relação lúdica com o cinema,com a coisa se desdobrando até mesmo para o lugar da crítica.Nesse espaço esboçante insisto- sempre que posso-, que se desconfie da pretensa objetividade de um crítico.As coisas se tornam mais perigosas,ideológicas nesses casos.Os que se fazem de neutros são mais temerários,já que tudo isso passa por uma linguagem.A dita função referencial é estudada em seu bê-a-bá como se o neutro estivesse presente somente em estilo.Ou seja,nenhuma linguagem é inocente.E se até para a ciência conta-se a interpretação...para a lingüística há enunciado e enunciação.

Por outro lado, levando-se em consideração que o “lado lúdico” pode se tornar também uma mera questão de fetichismo, e como toda idolatria, a se jogar a si mesma no vazio(Vertigo), proponho o quase impossível, que seria conseguir conciliar o amor pela arte com insights que sejam bem vindos como forma de prolongamento na obra e na vida.Confesso que prefiro o termo amor à paixão, pois essa última costuma ser muita das vezes meramente volúvel.Amor também pode ser retórica,mas, ao menos, parece mais interessante do que idolatria.


Já no blog do André Setaros(Setarosblog),o mesmo fala sobre a ausência de uma formação crítica de mundo nos críticos de hoje.Faz sentido.Ficarmos a nos perder em análises estruturais sem conexão com o mundo ou com o homem poderá interessar somente a “especialistas”.Sobretudo como algo sem objetivo,que não seja afirmar sua própria condição deslumbrada de “cientista”. O que pode ser pior, um cientista que não serve para nada.


Sem querer recusar, em princípio, qualquer forma de abordagem, sugiro um meio termo, fruição e reflexão, sem teorizações galopantes ou fetichismos adolescentes. Será possível?Pois, além do mais, as especificidades de estilo, de escrita deveriam ser respeitadas para o bem de nossa diversidade. Bem ao estilo das “Ciências Humanas”, de forma que um ponto de vista, ou de abordagem, não venha necessariamente a excluir o outro. Ou então estaremos falando de outras “ciências”.


Contudo, o que me interessou nesse momento, nesse espaço, é falar um pouco não tanto da crítica, mas do cinema lúdico, o que carrega consigo esse tipo de proposta como crença ou como projeto. Quando, nos comentários, Júnior falou algo sobre Edwards ou Stanley Donen,me senti no campo do brincante,pois de diretores que falam direto ao coração.


Nesse sentido, hoje teríamos as reflexões cinematográficas de Shyamalan,sobretudo a partir de Sinais,e que culminaria em A Vila e em A Dama na água. Seria possível restituir à imagem um lugar de contorno não necessariamente clássico, mas quase virginal?


Em A Dama na água, o diretor utiliza uma aparição inocente como forma de catalisar algo em um ambiente de condomínio fechado. Local ressecado, filmado com imagens baças que passarão pela prova dos nove no cinema: “Voltar a um Zero”. Com um trabalho com as palavras funcionando como apelo aos ouvidos, um pouco como no filme Cantando na Chuva, em que o casamento do som com a velha-nova imagem se dava como iniciação.Um tipo de operação em que se olhava para o cinema mudo como resgate de uma energia primária,como forma de avançar.Caso da relação com seres inanimados no espaço(um guarda-chuva,por exemplo) à maneira de um Chaplin,em que imagem e som remetiam a um novo olhar,de iniciático frescor.


Tratou-se, para Shyamalan,sobretudo a partir de seu terceiro sucesso, até chegar em A Dama na Água, de uma questão referente à “limpeza dos olhos”, por meio de um universo fabular. De problematizar, mas propondo caminhos. Retomou-se a narratividade oral, a partir de um detalhe pretensamente tolo como em Singing in the Rain: um peixe fêmea.,enquanto montava-se um quebra-cabeça de palavras, de forma que uma imagem de si e dos outros fosse ganhando forma e vida.O cinema como estratégia de imagens e ouvidos a serem lavados.Reiniciação.


Mas há quem há tempos não se interessa tanto em problematizar, mas em encarnar diretamente o desafio é Tim Burton, sabendo que a fábula pode se tornar um recurso como outro qualquer em uma Hollywood que se acomoda a certas fórmulas, a um ponto de fazerem somente girar em torno de si mesmas. Para ele, foi também preciso buscar outras nuances do/no espelho.


Partindo do estranho, das margens para se chegar a um novo centro, recriou a fábula crítica na indústria. Foi expulso da Disney como desenhista pelo fato de seus contornos não caberem no padrão da dita empresa para agora retornar, impondo seu próprio estilo à mesma, em um trabalho para Alice no País das maravilhas.

Burton sempre foi um recriador, seja com Edward, em Edward mãos de tesoura, a remodelar casas e paisagens americanas com suas garras. Ou em Batman e seu entorno freak, nada ocupado com a fidelidade ao gibi original.Mais à margem que os próprios seres era a própria cidade de Gothan, um torto centro urbano.

Seguindo a composição de uma América avançada tecnologicamente e, paradoxalmente, sombria tornou o anticlímax de O Planeta dos Macacos perturbador, de maneira que uma autêntica herança expressionista, imbutida por vezes em segredo em um típico blockbuster,fizesse com que o público,sobretudo o norte-americano,se sentisse desconfortável ao deixar as salas de cinema diante da suposta ilogicidade do final.O herói como um impotente, e perplexo a constatar que seu amado lar era super-equipado,mas nada acolhedor.Não por alguma violência explícita.A câmera se afastava a filmar o Lincoln Center como um arquitetura pesada,algo gótica,passava por macacos com capacetes, armas,telefones para chegar em um céu sombrio e nevoento com ruídos de vozes de máquinas ao fundo, igualmente acompanhadas à distância.Como a névoa,tudo era inconcluso. Como em Buñuel, o absurdo como trunfo (do mundo e da América).


Em Peixe Grande
, seu cinema despertou novo estranhamento a quem esperava um típico produto “Tim Burton”.Aqui,como Shyamalan, problematizou o lugar da fábula, do lúdico no mundo de hoje.Nesse sentido,apesar de um ter sido leitor contumaz de Allan Poe,sua modernidade estaria mesmo para um sentido de Rimbaud e seu mundo das visões.Um filho que julga e não acompanha o pai por considerá-lo mentiroso em um inusitado labirinto do comum e do incomum,de verdades e mentiras, que desagradaram tanto a quem esperava menos suavidade na fábula,como pouca estranheza da mesma.Peixe Grande,um filme de retas e de curvas.

Em seguida, o diretor se entregaria a retomar e emular os caleidoscópios musicais de Busby Berkeley para a refilmagem de A Fantástica Fábrica de Chocolates,vinculando-se aos antigos musicais, antigo gênero do elogio do lúdico.O lúdico como trunfo,como olhar de conhecimento,partindo de um espelho invertido para se chegar a um ponto de avanço, não desprovido de enigma.Tanto no que buscava a imagem como a trama.


Nesse último Alice no País das maravilhas, Burton fez com que os caleidoscópios citados fossem reconvertidos em um nonsense labiríntico de Lewis Carroll ,em uma desconstrução de certa ordem lógica,fazendo com que sua câmera enxergasse sempre a partir de um reflexo de algo,de um outro,como no caso da relação entre livro,imaginário prévio e imagem.O que já havia nos Batmans,em que se via uma cidade a partir do olhar de outros,de alheios à ela e,de certa maneira,aos gibis.


No caso de Alice,apesar do filme não ter sido feito para 3 D,o formato,por motivos maiores,acabou por se impor na produção.Felizmente e por morar em uma quase roça,pude vê-lo no formato “normal” e acho que percebi melhor o que seria o tal projeto original e como Burton teria reinventado por uma vez mais a aventura e a fábula no dito “cinema contemporâneo”.

Partindo de uma protagonista mulher com caracteres bem singulares e autênticos, fez com que cada detalhe de plano se desdobrasse em novos mundos.Trabalhou um jogo visual aberto e à altura dos jogos de palavras implicados, interagindo com as“ histórias infantis” de um certo repertório clássico.Para tanto,inseriu uma inusitada abordagem de animação,mas sem relação alguma com o habitual infantilismo de certa Hollywood de uns tempos para cá. No fundo,é tão ou mais grave que um “desenho sério” como Ratatouille.



Em Alice, a personagem precisa se redescobrir.E o cinema também.As sacadas de nonsense são preciosas, até por que não chamam atenção para si mesmas. Sem intelectualismos estéreis, ao jogar um jogo grave, infantil ,o filme restitui à imagem a força virginal do olhar proposta por Shyamalan em seus melhores momentos e pelo mesmo Burton em Peixe Grande.


Alice é uma obra que trabalha de maneira inventiva os sentidos, junto à dimensão originária do que seja,de fato, a aventura..Como reiniciação e iniciação. Redescoberta de um estatuto de linguagem que se faz reestatuto,tal como O Chapeleiro Maluco vivido por Johnny Depp, andrógino da imagem a desconstruir o aparato dessa lógica que implicaria ideologicamente maquinismo ou insensibilização.

Não acredito tanto, como sugeriu Zé Geraldo Couto em um ótimo texto, em postura feminista,mas em elogio do que seria uma alma feminina em expansão.Alice e o Chapeleiro.Assim como o visionário da poesia Rimbaud era um andrógino.


O filme remodela estética e reflexivamente o cinema de fábula, não usando das tensões de espera ou da didática previsíveis, mas de fundos de cena que brincam e se sobrepõem, o que resultou em algo fiel tanto a Lewis Carroll quanto ao diretor.




Em Cantando na Chuva ou em A Roda da Fortuna um cenário era substituído por outro, em sobreposições de mundos que se recriavam. Explosões e reimplosões. A trajetória em Alice é a da mobilidade, da descoberta do olhar, como as mudanças de tamanho em seu corpo. Com o tempo, o filme diminui a ótica de reflexos mais baços para ir ganhando uma forma mais intensiva e que sabe ser discreta justamente no momento da batalha final,que só se leva à sério enquanto sugestão simbólica,à distância.


Não à toa haverá uma breve coreografia do Chapeleiro Maluco, que será posteriormente retomada pela companheira. Em A Roda da Fortuna, Astaire e Charisse eram em princípio estranhos que aprendiam um com o outro em uma mediação de cenários diversos. Em O Pirata, Garland aprendia a ser mulher, desdobrando-se nos cenários,nos mundos do outro- Gene Kelly- e seu crescimento estava paradoxalmente vinculado a uma lógica do lúdico. A ex- menina que, diante de um grande aperto, descobria-se improvisando,tornando-se, como o companheiro, uma artista.


Em Alice,a fusão de oralidade com a imagem, de frases que não dão importância para o estatuto do “sentido” relacionadas às operações cenográficas não estariam distantes de que seria um desses musicais. Seu filme anterior, Sweeney Todd, era um declarado. A Fantástica Fábrica faria de um parque de diversões a provar pais e filhos uma citação e recriação dos caleidoscópio visuais do antigo coreógrafo(inovador) de Hollywood.



É com esse característico e incomum apuro visual que Tim Burton reencontra o sentido grave do lúdico.Com Lewis Carroll, encaixe e soma. Como a menina e o Chapeleiro,visionários em um modo de produção e de distribuição que lhes parecem alienígenas(caso do 3D,por exemplo).

Já se sabe que não se foge do mundo estando na indústria. Mas, a partir da mesma, pode-se recriar e criar com uma autenticidade de Alice.Fazer com que o requinte bem dosado funcione como Visões, reflexões e prolongamentos.A linguagem consumando certo estatuto do olhar,como a protagonista que, ao se lembrar da menina, poderá seguir adiante.Cinema como redescoberta e descoberta.

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