quarta-feira, 16 de junho de 2010

Enquete Hitchcock(alguns apontamentos)





Observando a enquete no blog do André Setaro: Setarosblog, sobre o melhor Hitchcock, filmes como À Sombra de uma dúvida, Interlúdio, os Pássaros, Marnie, O Homem Errado e a Tortura do Silêncio, grandes Hitchcocks, mal foram lembrados. Isso para não falar em Rope(O Festim Diabólico) ou em Sob o Signo de Capricórnio.
Mas Janela Indiscreta e Um Corpo que cai resumem, como talvez nenhum deles, o método hitchcockiano em forma e conteúdo. O diretor em questão se notabilizou por ser um minucioso controlador de cada recurso de seu cinema-um demiurgo, por excelência-que, no primeiro filme citado, cria mundos a partir de um artifício cenográfico para um apartamento de Nova York e, também, para o que se encontra quase invisivelmente ao redor dessa construção:a rua,seus sons,etc.

No segundo caso, Hitchcock faz de um homem com acrofobia (medo de altura), alguém que se dispõe a fazer de uma mulher morta, idealizada, algo vivo e a seu alcance. Ou seja, tornar o fantasmagórico verdadeiro e totalmente possuído para o ser em questão, via artifício.
Hitchcock não era um manipulador sádico, como tantas vezes foi ou ainda pode ser visto.Sua obra apresenta plena consciência do processo manipulador pela qual se constrói, mas também se desconstrói,em âmbito problematizador e ético.

Se em Rope(Festim Diabólico),os assassinos querem manipular a vida e a morte,pensando estar além tanto de uma quanto de outra, será por intermédio de uma postura limite e da figura de um professor-consciência das coisas- que serão desmascarados por aquele que teria sido(involuntariamente?) a própria cabeça do crime.O educador mencionado estará inserido, principalmente ele,no processo da penalização final.Arrependido,envergonhado das ideias plantadas com imprudência nas mentes e almas dos jovens, situa-se,ao final da obra, de costas para a câmera, com uma iluminação esverdeada,doentia a sugerir as camadas implícitas e implicadas.É como se todo o plano manipulador fosse explicitado no momento em que o professor reconta o crime de sua própria mente. Ele parece ter estado lá, como uma ideia fantasma a orientar os detalhes.

Na medida em que o filme se desenvolve, as luzes se tornam de néon, mais artificiais,não somente pela passagem do dia à noite a criar o suspense, ou o clima doentio que se evidenciam. Enfim, é todo um artifício que se autoproclama, de mente e de cinema, com a iluminação do prédio do lado de fora da janela principal a incidir, sem nenhuma cerimônia e como autodenúncia, na sala de estar onde ocorrerá a cena.Trata-se de uma forma de linguagem, de um simulacro que se nomeia enquanto tal.

O ator arquetípico de Alfred Hitchcock dentro de uma proposta de denúncia de formas (literalmente falando) de manipulação, como configuração das limitações do homem demiurgo recaiu, na maior parte das vezes,em James Stewart.No filme mencionado, é ele quem monta e remonta as ideias da cabeça dos alunos e, posteriormente,as tentará desconstruir,mas sem escapar a seu próprio artifício de moralista tardio,quando não haverá mais tempo para um concerto.

É, sobretudo, o mesmo Stewart que, em Janela Indiscreta, tentará, para fugir ao tédio,fazer com que suas teorias sobre um crime sejam verdadeiras. Para tanto, esforça-se por manipular as sombras projetadas, como também os seres à sua volta: a namorada, uma enfermeira, um velho amigo, o próprio assassino, a fim de fazer valer suas obsessão de brincar de controlar um universo.Ideia e matéria em condução aparentemente manipuladora são estratagemas hitchcockianos,que colocarão em xeque não somente seus próprios protagonistas, mas, sobretudo, toda uma indumentária “cênica”,cinematográfica,junto a nós mesmos, seus espectadores.

Em Um Corpo que Cai (ou Vertigo),o mesmo Stewart faz o que pode e o que não pode para tornar Judy,a mulher real: Madeleine, um fantasma vivo, absoluto, como uma espécie de alquimista de formas do cosmos, em um processo em que, por uma vez mais, a luz de néon, doentia, incidirá de um prédio de fora da janela sobre a mulher em transformação.Trata-se do mesmo tipo de cor que conduzirá a cena de um pesadelo que levará o personagem de Stewart a um tratamento psicanalítico ou psiquiátrico.

Em Janela Indiscreta,conduzido com humor a um tempo inglês e norte-americano, em uma encenação mais sutil,como que realizada à pinceladas, temos vidraças e pequenas "sombras chinesas" a se movimentarem no interior de pequenos blocos-espaços.Com os pontos em cores experimentais a se instalarem em cada um dos vários mundos das janelas,em que o herói será sacrificado por uma segunda vez, por conta de sua velha mania de controlar os fatos.

Em Vertigo, a obra já ganharia o formato de uma solenidade germânica.Nos momentos de paixão, teremos um derramamento típico de Goethe, poeta alemão,com direito a delírios de suicídio, sem que haja um desvencilhamento de um horror à maneira de Edgar Allan Poe. Nas de maior tensão, temos a ópera Wagneriana, sobretudo nos momentos em que acompanhamos as subidas pelas espirais da escadaria da alta torre,em que uma pintura tumultuada e sobrecarregada se faz presente como fundo de cena,tornando a obra o lugar eleito dos extremos emocionais,e espirituais-fantasmagóricos.

Janela Indiscreta contém, apesar do já dito, algo do cineasta Murnau, pelo manejo e somatório de mundos paralelos, janelas/mundos a se interceptarem em algum ponto na obra, e pela junção de uma tonalidade do cotidiano a um “irreal” estilizado,em mesmo patamar de universos.
A condução, contudo, terá mais de cinema norte-americano, seja pelo tipo de humor irônico a intercambiar idéias e instantes, seja pelo sentido quase cartunesco de estilização de personagens, em ambientes recortados por vidraças, por vezes foscas,por vezes mais cristalinas, às quais Stewart procurará impor seu sentido de controle das coisas.Enquanto uma trilha de jazz cooperará para a condução de certa flexibilidade no jogo,inclusive na postura física esguia e algo mutante da namorada de Stewart,Grace Kelly, a interagir com as leves síncopes da banda sonora.

Um Corpo que cai opera em mente bifurcada, mas contém algo de rígido e de rigorosamente trágico.Afinal de contas, trata-se de um homem possuído ao limite por tais caracteres. É uma obra fantasmagórica e operística, voltada para certo romantismo alemão - o de Wagner- como já dito.No fundo,duas obras-chaves para um conjunto de Hitchcock - contando com seu ator paradigmático - em que o diretor não faz da manipulação do Mal uma instância invisível a nos assombrar ou a irromper do outro lado da tela -ou,de uma janela-,a nos devorar, sem que nada saibamos dos estratagemas implicados,ao contrário,por exemplo,de um David Lynch.O próprio diretor inglês dizia que deveria apresentar dados aos espectadores.



Por essas e outras, Hitchcock foi- e é- um artista maior, sabendo dispor na sua, na nossa e na de seus heróis, uma consciência de artifícios, de tendências próprias à manipulação demiúrgica. Criava um mundo para, posteriormente, confrontá-lo, dispô-lo em estado de xeque, de suspensão, intercalando as coisas com um recurso de um humor da ordem da desmistificação.Como cineasta à frente de seu tempo foi ampliador, porém nomeador dos simulacros da linguagem, tendo sido, portanto, problematizador dos limites empregados, instalando-se como que em um sábio pêndulo de construção/ desconstrução de si e de um aparato de fascínio e de sedução do cinema.
Em Um Corpo que Cai, por exemplo, as malhas formais, fantasmagoricamente construídas pelo artifício desmedido,voltam-se contra si mesmas,a provocar a final implosão.Trata-se do ser e do artifício se autodenunciando pela/na linguagem, enquanto nenhum dos demiurgos implicados,seja diretor, espectador e personagens estarão de fora.

Ps-A foto é de seu derradeiro filme,o classudo Trama Macabra.

Um comentário:

  1. Bela exposição da arte hitchcockiana. Também gosto muito de "Trama macabra". O final, que é a despedida do mestre, é de um grande humor, com Barbara Harris a piscar os olhos para o público.

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