segunda-feira, 28 de junho de 2010

Na Televisão







Passando ontem um Tiro na Noite, de Brian De Palma, na TV, veio-me à memória o fato de ter sempre havido uma movimento de desclassificação desse diretor pelo mesmo ter sido, seja um suposto plagiador de Alfred Hitchcock, seja um mero brincalhão formalista,de intenções e gosto duvidosos.

Não é bem o que se nota no filme em pauta. Haverá um momento em que estaríamos a rever a famosa cena do chuveiro de Psicose. Ela comparece como propositalmente mal feita, tão mal copiada, de maneira que certo tom jocoso se imponha logo de cara. De onde se levanta uma questão: Tratar-se ia de um filme interessado em desmontar Hitchcock, com a petulância dadaísta de quem sobrepõe um bigode sem pé nem cabeça em um filme consagrado?

Haverá, posteriormente, uma cena em que John Travolta, protagonista do filme, se arremessará ao mar, até salvar uma moça de pele clara de um afogamento. Temos, com isso, um nítido paralelo com o filme Um Corpo que Cai, do citado diretor Hitchcock. Já no filme de De Palma aqui tratado, a personagem também voltará intacta à terra,mas não como o ser distante e misterioso, à maneira da Kim Novak do diretor inglês. Dessa feita, trata-se uma mulher com gestos e falas bem palpáveis. A partir da aparição da moça, praticamente uma prostituta, abre-se uma operação importante na obra. A mulher trabalha com maquiagem, de maneira a tornar “natural” a aparência das pessoas, como ela mesma afirma. É, ao menos, o que pensa fazer. Pois a maquiagem no filme estará inscrita em cada plano ou rosto como método de filmagem. Há, por esse lado, algo do elogio da maquiagem, feito pelo poeta francês Charles Baudelaire, igualmente em contexto de massificação urbana, em que a marginalidade de anônimos em beiras de ruas era evidenciada. Assim como uma nova relação entre Belo e Feio.

Na obra de De Palma, trabalha-se a partir de uma história de cinema já desenrolada e,por vezes, assimilada. No caso, o próprio filme voltará obsessivamente às fitas, aos frames de uma filmagem posta. Imagens e sons revistos em detalhes por Travolta,,o protagonista, que procurará recompor os elementos de um suposto crime em busca da obra perfeita, tal como o James Stewart de Um Corpo que Cai. Em Um Tiro na Noite, o som do tiro ocorrido no acidente, a se encaixar com precisão ao visual captado, faria da imagem uma prova, como no filme Janela Indiscreta, do mesmo Hitchcock. Onde voltamos, por outras vias, ao diretor inglês. A obra perfeita pode se configurar como engodo, a passar por um triz do figurativo ao abstrato. Sobretudo, de um suposto concreto ao fugidio, constituindo-se como fator de risco.

Em Blow up, de Michelangelo Antonioni, a quem o filme homenageia em seu título original (Blow out), a imagem do fotógrafo, personagem principal, passará de um suposto real à condição de um tipo de alucinação em que a encenação da obra incorpore os personagens e seus signos como ilusões de si mesmos,de maneira que, no plano de desfecho, a dissolução em cena do protagonista o terá esvaziado por completo de um real, no mundo da imagem.
Em Um Corpo que Cai, James Stewart configura-se também como impotente diante das coisas. Mas buscará sua salvação em uma imagem de espectro, irreal, de um quadro rígido e impassível de uma mulher. Em outros termos, procurará a vida em uma imagem hierática, estática- nascida morta. Que é onde seu artifício, no desenrolar da obra, se voltará contra si, a implodir a obra pretensamente perfeita.Criada, recriada e aniquilada em termos trágicos de uma ópera de Wagner.

Em Um Tiro na Noite, há intimidades sendo devassadas por aparelhos, em uma clara analogia com Janela Indiscreta e sua dimensão ética, de maneira que uma nova tragédia poderá se precipitar. Em suma, se De Palma desmontaria Hitchcock seria para, no fim das contas e de certa maneira, retornar ao mesmo, embora contextualizando-o para uma nova época.Histórica e de cinema.
Contudo, se no diretor inglês havia a sugestão dos artifícios empregados na filmagem, dos mecanismos implicados em sua confecção, De Palma trata os elementos de cinema,por um lado, como diretamente desmontáveis a nossos olhos.Quando,por exemplo, o assassino mata por engano uma moça que mais se assemelha a uma boneca de pano, esvaziada de substância.Ou no momento do indivíduo, tecnicamente, colar o som a uma imagem, uma vez que o resultado da sonoplastia nos chegará esvaziado de sentido e de estética.

Por outro lado, no entanto, a operação no filme seria mesmo de reconstrução. A partir de artifícios expostos, da imposição de certo brega no tom, em decomposição de sons e imagens, De Palma,no fim das contas, apostará em uma relação de Travolta com uma frágil moça, impotente diante do mundo. Após o processo de relativa consumação do “gosto duvidoso”, em que o kitch já terá dado suas cartas,com suas máscaras e maquilagens quase borradas- simulacros-, é que o vôo poético poderá comparecer como legitimidade de linguagem. Travolta com a moça em seus braços, entre o concreto e o abstrato e vice-versa, enquanto a câmara gira em torno de si mesma e dos seres no plano. Movimentos circulares a acompanhar os fogos de artifício de uma festa na cidade, em um tipo de vertigem dramático-poética a incorporar, em imagem, som e ritmo: o amor, as perdas, o trágico e a memória, em única e incisiva operação. Nesse momento chave, o suposto brega e a “mentira”, repentinamente, passam a registro de verdade de uma condição humana. Uma repentina combustão de De Palma em cena, tal como os fogos de artifício do local. O simulacro como potência da criação, como diria o filósofo francês Deleuze.

Em todo caso, o momento não ocorrerá tanto como a alucinação do filme Blow up, uma vez que a câmera lenta decompõe e compõe os sentimentos e seres com serenidade, como bem cabe a quem, respeitosamente, observa um homem e sua alma, uma mulher e sua inocência, contornados por cores diáfanas em pontilhações esbranquiçadas no jogo visual. Fugidios fogos que circundam um plano e uma moldura de cena. Sentido de moldura viva, pois se trata de um instante fugaz tornado eterno por um registro de direção de cinema.

Mas também pela acidental gravação de um grito, involuntariamente realizada por Travolta, para o outro filme para o qual trabalhava como sonoplasta. Na “obra” para a qual trabalhava, permanecerá um vestígio do momento. Um som que resumirá um mundo. Já para a obra de De Palma, trata-se de um filme dentro de outro. Um fragmento de um grito efêmero sobreposto, pelo jogo de montagem, a um registro do eterno a se instalar na memória: Distendidos no tempo do filme, os fogos de artifício intercalam e somam o estilhaço breve de um som. Concreto.

Filmado entre o kitsch e a crueza das ruas, Um Tiro na Noite faz da desconstrução de um arsenal da arte, um trajeto sinuoso de imagens e sons enganosos, com direito a andróginas bonecas e maquilagens borradas. Simulacros assumidos em tom jocoso que, com e no tempo, passam a reconfigurar uma verdade humana, com direito ao vôo poético de incisiva,arriscada expressividade. Nesse caso, o cinema de De Palma não exatamente nega o de seu mestre - Alfred Hitchcock- mas, de certa forma e, à sua maneira, o prolonga, como quem brinca, e aqui soube brincar um tanto à sério, com a linguagem. Como “potência do falso”. Da verdade no falso. Como uma espécie de herdeiro de Nicholas Ray. Ou melhor, como um Jean Luc-Godard norte-americano.

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