segunda-feira, 19 de julho de 2010

Amargo Triunfo-Nicholas Ray(comentário livre,estendido)








Revendo o Amargo Triunfo (The Bitter Victory), de Nicholas Ray, em cópia destacada frente às demais com que já me deparei, pude experimentar uma visão mais concentrada. A obra, de rara densidade no cinema norte-americano de estúdio, talvez encontre alguma relação com alguns trabalhos de Samuel Fuller ou com certos independentes de John Cassavetes.

No filme em questão, os personagens de Ray se encontram com sua sensibilidade à flor da pele, embora na maior parte das vezes não cogitem em demonstrá-la. É que Amargo Triunfo filma, sobretudo, partes brutas de suas consciências, em estado máximo de suas contradições, como poucas vezes se veria no cinema. O filme se passa, na maior parte do tempo, em desertos, com o mínimo de elementos em cena. Estratégia que favorece uma nudez progressiva de consciências e de relação entre homens. Mas ao falarmos em um tipo específico de densidade, ainda não estamos a estabelecer uma analogia com aquele tipo de cinema praticado na Europa, calcado, antes, no existencialismo.Trata-se,aqui, de Shakespeare.


Amargo Triunfo é filmado entre areias, pedras e céu, tendo o deserto como palco, onde falas altivas e meditativas são “recitadas”. Ambiente apropriado para que contradições, alternadas entre desveladas e veladas-intermitentes- evoquem dores do passado, do presente, ciúmes e jogos de poder. Há uma quase absoluta concentração de confrontos e autoconfrontos do espírito e do coração em despojado ambiente, aberto a ares e ventos. A certa altura, um protagonista - Richard Burton-, afirma, um tanto quanto condoído: ”Eu sacrifico os vivos e salvo os mortos”. O filme em questão filma vivos e “mortos”, terra e céu, passado e presente, enquanto covardia e coragem se misturam, a um ponto de se confundirem em meio a um turbilhão de tempestade de areia.

Ray mostra interesse pela postura imponente de seus atores, filmados em planos firmes. Quão mais altivos em sua postura física e em suas falas, mais se revelam dúvidas e fraquezas. O diretor filiou-se dessa feita,como Orson Welles, a William Shakespeare, pelo sentido cósmico do drama e tragédia, em que expressões são encenadas de altos âmbitos, como que rente às nuvens. O andamento é imprevisto. Não se sabe qual fala ou entrelinha formal virá a implodir algo, seja uma situação aparente de “filme de guerra”, seja a linha mínima linha do roteiro, assim como pouco ordenáveis e mínimos são os elementos em cena.

A filmagem se interessa bem menos pelos eixos do que pelas dobras do plano e de seus personagens. Filma protagonistas que, indiretamente e por vezes até mais diretamente, tendem ao retorcimento em ambiente poeirento. Contudo, como reagir em cena frente à opção da direção por um tipo específico de desnudamento, inclusive nas locações? A fisicalidade de expressões humanas encontra uma contenção e dureza de rochas, aliando-se aos cenários, tanto quanto perspicazes e cortantes são as falas. Isso a operar como diálogo com o ilimitado das consciências no espaço-tempo de um filme que se passa em deserto labiríntico, filmado experimentalmente. Ou seja, a valorizar o inusitado dos cortes e do entorno.

Amargo Triunfo é uma obra de meditação, em que cada detalhe em seu cenário rude evoca um drama de grandes proporções, de maneira a desdobrar o “Ser ou não Ser” shakespeareano em “Agir ou se Omitir”,como estratégia quase autofágica de captação de frêmitos do coração e do espírito, a guerrear entre si. Pela força de resistência que implica o tipo de encenação - leia-se: direção - poderia haver mesmo algo do cinema de um Samuel Fuller. Ou mesmo, de um John Cassavetes- como já dissemos- pelos limiares, inclusive de desespero, filmados tão rente aos homens.

Nicholas Ray, contudo, confere antes aqui, um tom Hamletiana à obra. Além de um forte sentido das faltas, a filmar blocos ásperos nos planos, situados em locações abertas entre terra(Terra) e céu, o diretor impôe um tom mítico ao filme. Haverá um forte aspecto moral a implicar jogos de poder, exprimidos em planos rigorosos, conformados à rigidez recuante das consciências, inseridas na natureza pétrea de solos e subsolos. Assim como onipresente é a areia, a encenar ao lado, ao fundo e,às vezes, à frente dos personagens a probabilidade de dissolução dessa mesma rigidez. A que implicaria, antes, vaidade,como dimensão mítica: “E vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Há a culminação de um processo na belíssima cena de tempestade de areia, em que decisões urgentes se impõem durante um período mínimo de tempo e, em meio ao embaçamento filmado de visões e à truculência do local, em que o instante fugaz parece eterno, faz com que a substância tome todo o plano.Com o tipo de alvoroço prolongado em pontos de fuga no enquadramento, a poesia do filme se afirma como transpassamento de uma postura, frente a um possível afunilamento de homens no subsolo físico e de suas almas.

Porém, a obra, além de dispor homens e "formas secretas, duras''-coisas- lado a lado, inclui maquetes de guerra junto a bonecos de pano, onde se vêem desenhados indivíduos privados de rostos. Uma insólita licença poética em trabalho de forte concreção. A câmera, situada entre o concreto e o mítico, transitará, portanto, da dimensão pétrea de seres e cenários a símiles de humanos, aparentando nonsense ou mesmo um leve tino de humor negro. O que configura, antes, delineamento de nuances no tom da parábola visual, em que pelas brechas do sistema de estúdios e de uma suposta literalidade, homens moralmente aleijados convivem, não somente com mortos físicos e lembranças evitadas do passado, como com suas próprias marionetes, em contexto de questionamento de identidade em radical e tortuosa inserção na terra(Terra).

Ou seja, no palco de cinema, personas, marionetes de si mesmas, transitam de um estado de esvaziamento a ecoar maquetes de guerra, a um estado de alma e de razão que, levado ao limite, em encenação elegante e brutal, irrompe como autoenfrentamento em cenário árido. Contudo, na aspereza da obra, Nicholas Ray permanecia poeta no sistema de estúdios de Hollywood. Consciente,antes, da emoção, mesmo que por vezes “bruta”, impressa em cada dobra filmada. De maneira que cada ideia ou respiração em cena se constituía como ratificação ou retificação de um estatuto de consciência, ora a batalhar contra si, ora a se atormentar ao ponto de um novo, inevitável afloramento.

Como notamos, por exemplo, no plano de encerramento, em que a expressão do ator no instante de sua implosão moral, nos aparenta mutismo.O diretor, em rápidos segundos, meditará cinematograficamente, com precisão e beleza( ou beleza na precisão), sobre o que seria- ou poderia ser- a constituição de uma identidade.

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