sexta-feira, 31 de julho de 2009

Experiência Maior



Soberba, de Orson Welles foi feito após Cidadão Kane e, como se sabe, a montagem foi feita à revelia do diretor, ficando truncada. Interessante que nada impediu o filme de ser um dos mais impactantes já feitos. Sente-se um sobressalto ao final do filme, que sufoca o andamento da obra e parece inserir algo um pouco alheio ao espírito do que então se passava. Mesmo assim, as imagens finais, como todo o restante, ficam com uma força enorme ao final da projeção. Guardemos esse termo: projeção.
Nesse filme se sente menos a interferência mais direta do autor Welles se relacionarmos com outras obras, tais como Kane, A Marca da Maldade A Dama de Shangai e tantos outras mais. Um dos motivos seria que Welles, dessa feita, não se encontra aqui com sua presença de ator, aquela sua presença quase Onipresente que enche a tela.
Mas, bem mais do que isso, Soberba é um filme em que se pode falar, à maneira de Bazin, que o cinema se torna romance, ou seja, que se pode escrever diretamente em cinema, com a ressalva de que essa espessura romanesca é extremamente cinematográfica. E dentro desse romanesco, a presença do narrador-memorialista é o aquele que procura organizar as partes desse passado, em busca de um "tempo perdido". Ou seja, a memória aqui é passível de reorganização das impressões, dos afetos, dos estados de espírito, embora de maneira espiralante/circular, mas nem por isso sem um certo senso de "ordem".
Quando me refiro a alguma ordem nesse filme, é claro que não se trata de uma ordem extremamente fechada, ou que se trataria de um filme demasiadamente "clássico".Welles permanece ultramoderno em seu romanesco, mas é que agora, ao contrário de Cidadão Kane, de A Marca da Maldade, de A Dama de Shangai....espelhos e reflexos podem coincidir.
Em Cidadão Kane virou praxe dizer que a questão fundamental seria: "Onde esta a verdade?" Ou seja, a verdade de Kane, a verdade de uma vida, etc...A figura do trenó dilacerado pelo fogo ao final é a prova, a evidência que a imagem nos dá de que a única coisa que poderia importar para o personagem se tornou descartável com o tempo, pelo depósito de lixo. Que o bem mais precioso( que englobaria ouros bens preciosos) foi sendo esquecido ao longo de uma vida de correcorres, de vaidades vãs, a um ponto em que o essencial se perdeu. É um pouco como no Eclesiastas: " é tudo como correr atrás do vento", ou " como querer pegar o vento". Mas, mais do essa dimensão de fábula, quem teria sido, de fato, Charles Foster Kane? Resposta do filme: Não há reflexos que possamos pegar, possuir. Esses nos fogem.
Em A Dama de Shangai, a cena mais conhecida, de maior pico( embora seja esse um filme feito de planos em picos, em tensões extremas, contínuas), é aquela em que os espelhos vão se partindo num alvoroço com os tiros e nada permanecerá como nítido que possamos pegar. Ou seja, novamente temos aqui que espelhos e reflexos não coincidem, se estilhaçando em várias partes com as quais não se compõem uma unidade legítima para nós. Poder-se-ia falar com Lascher na relação entre narcisismo e potência de perda, destruição.Mas as coisas vão decerto mais longe.
Nesse Soberba existe uma luz diáfana que vai penetrando intermitentemente os ambientes fechados, um pouco como se Welles tivesses se tornado uma espécie de novo Carl Dreyer, dando formas quase etéreas ao invisível. As tomadas estão entre as mais belas do cinema, com fundos de cena vivíssimos. E ainda podemos ver um bocado dos jogos de espelhos do diretor, seja em cenários de fundo, seja nas vidraças, na circularidade dos movimentos de cena...Mas é, antes de tudo, uma uma obra de rostos que se fecham e que se abrem com sua vida de rostos inteiros, vivíssimos, expressivos que comunicam a nós sua epiderme, seu calor. Trata-se, nesse resgate pela memória, de uma obra de imenso calor humano que pode, a princípio, parecer um pouco alheio ao cinema do diretor.
Se esse é um filme a um tempo diáfano e também de epidermes, de calores, de personagens em sua maioria imensamente respeitosos, com uma espécie de dignidade que nunca se perde, trata-se sim e ainda de um filme de um "nobre", com uma nobreza muito particular. Mas cuja nitidez na dignidade não deixará de lado seu próprio mistério, o mistério das origens da ficção.
Nos perguntamos de onde viria essas imagens, essa "projeção de luzes" obedecendo a um plano de demiurgia, a um plano maior de criação/reordenação. Os créditos finais nos mostram apenas um microfone a anunciar os feitores do filme, os atores, etc... e esse microfone remeterá por fim ao próprio Welles que se anuncia então como o roteirista e diretor.
E quem seria esse Welles, afinal? Um microfone apenas, num lugar "sem-lugar", já que não há nenhum chão, não vemos matérias/corpos a abrigar esse corpo de homem. Essa voz que nos fala é uma parte do corpo do narrador, do demiurgo.Mas, mais do que isso, é um momento quase definitivo em que podemos ver a presença da obra e do autor se confundindo e se materializando com a ideia de Projeção de uma Obra, de um Rastro que propulsiona as coisas com seu sopro,( a fala é calma) , em sua projeção quase sussurrada. É o momento em que a criação de uma obra nos remete a uma espécie de origem de tudo, um microfone apenas como a materialização que nos levará para cada vez mais longe do que poderíamos pegar/possuir.
É a mesma natureza do mistério de Welles que se inscreve novamente nesse final a nos provar que estivemos, a todo tempo, num estado quase mágico de supensão, suspensão essa tão cara à obra um diretor, de um gênio que suplementa sua obra com calores intensamente imprevistos, sem jamais abandonar seu (aqui) discreto jogo de espelhos, a única "figuração definitiva" possível para um criador de excessão, para um poeta de marca maior: a rigor, seus Rastros que, em Soberba, se fazem delicadíssmos como pegadas diáfanas e com toda a pregnância humana a que um artista se deu direito. Das maiores experiências da chamada Sétima arte!

Nenhum comentário:

Postar um comentário