terça-feira, 28 de julho de 2009

Intercâmbio Mental/Espiritual

De todas as últimas vezes que pude (re) ver ao Festim Diabólico, de Hitchcock ficava meio que nítido que aquela tomada final com os três personagens igualmente enquadrados equivalia a um ritual elegíaco trinário de culpa e(ou) mea/culpa frente ao crime cometido. E todo aquele discurso didático/moralista do professor( James Stewart) não se sustentava nas imagens do filme, que adentraravam a culpabilidade do mestre dos garotos. Afinal, Stewart com suas idéias supostamente arrojadas de "seres superiores " e "inferiores" semeou as raízes do crime na cabeça de seus pupilos. E logo que ele procura entender como teria sido cometido tal crime, saberá como ninguém passo por passo como deslindar, em sua mente assombrada, como as coisas teriam de fato ocorrido daquele dia e lugar fatídicos, num intercâmbio perfeito entre sua mente e a dos assassinos. Ou seja, ler aqueles garotos era como ler a si próprio, pai espiritual dos meninos.
Por isso,entre outras, o filme se encontra aquém (ou além) de um mero exercício virtuosístico com as imagens( a experiência de uma continuidade única e avassaladora devido a pouquíssimos cortes, realizados quase invisivelmente).
Depois tive a chance de ler ao texto do Lourcelles, que coincidiu com a visão que tive. E o transcrevo aqui extraído do dicionariosdecinema, por cortesia do Júnior.

Festim diabólico
Primeiro filme de Hitchcock em cores, primeiro dos quatro rodados com James Stewart, , primeiro onde o diretor aparece como produtor. Data importante na carreira de Hitchcock, Festim diabólico é também um dos filmes mais sérios jamais filmados. É baseado na fórmula que, durante mais de quarenta anos, vai seduzir os públicos do mundo inteiro: um extremo formalismo posto a serviço de emoções elementares, de temas universais, ligados em sua maioria à moral. Realizar um filme de um único plano foi sempre o sonho- mais ou menos confesso e consciente- de um bom número de diretores. De fato, este sonho corresponde à passagem ao limite de uma das duas principais atitudes estéticas possíveis no cinema: dada a inevitável fragmentação da criação cinematográfica, ou podemos acentuá-la e tomar como ponto de partida pesquisas estéticas que valorizam a montagem e a multiplicação dos espaços, ou podemos negar esta fragmentação ao forjar uma continuidade que absorva todos os espaços em um único espaço, todos os planos em um único plano. O cinema da fascinação ( Lang, Preminger, Siodmak, etc), cultivado nos anos 40 nos Estados Unidos, vai levar esta tendência ao seu mais alto grau de refinamento, ao desenvolver o uso do plano seqüência. E não é espantoso que Hitchcock, que considera cada filme como uma desafio, um exercício de estilo, uma nova maneira de estarrecer o público, tenha tido nesta época o desejo de estender as possibilidades do plano sequência à dimensão de um filme inteiro. Pragmático, formalista, mas não esteta, Hitchcock vai levar a cabo este desafio em primeiro lugar tomando-o ao pé da letra: um plano é um plano; portanto, nada de mudança de local, portanto tempo contínuo, portanto nem um único raccord visível ( o que vai implicar a utilização de astúcias e truques visuais , uma vez que, tecnicamente, nenhum plano pode durar mais que dez minutos de projeção). O desafio proposto nos leva assim ao teatro mais fechado e claustrofóbico, enquanto que, por exemplo, no espírito de um Preminger , o sonho do filme em um único plano possui algo de cósmico: trata-se de abater as muralhas em torno da realidade a fim de apreendê-la em um único fluxo uniforme e em um espaço contínuo.
Curiosamente, em Festim diabólico, o “parti-pris”, a lógica do ponto de partida se perdem no meio do caminho ou, se preferirem, se desvanecem em um harmonioso compromisso. A razão estará em que a virtuosidade cansa facilmente o mestre do suspense? Em todo caso, uma mudança de plano será absolutamente normal e visível, o plano seguinte vai se efetuar sobre as costas de um personagem ( fusão sobre preto, “fondu au noir” disfarçado), e o último “fondu au noir” vai se dar excepcionalmente sobre a cobertura do baú.. Enquanto que um filme em média comporta entre duzentos e seiscentos planos, Festim só tem onze ( respectivamente, o de 1’54, 9’36, 7’51, 7’18, 7’09, 9’57, 7’36, 7’47, ‘0’, 4’36, 5’39). As dez mudanças de planos se operam da seguinte maneira: 1) mudança de plano correspondente a uma mudança de lugar ( é o único do filme: passamos do exterior ao interior do apartamento); 2) sobre as costas de John Dall; 3) normal; 4) sobre as costas de Douglas Dick; 5) normal; 6) sobre as costas de John Dall; 7) normal; 8) sobre as costas de John Dall; 9) normal; 10) sobre a cobertura do baú onde está o corpo.
Aliás, este filme que recusa a montagem é extremamente découpé e autoritário em sua mobilidade e sua maneira de apreender o espaço. Aí também ele vai na contramão da ótica do plano sequência segundo Preminger, que visa a fazer esquecer ao espectador a existência da câmera. Aqui, a câmera permanece, do começo ao fim, muito presente: ela, como sempre em Hitchcock, é o personagem principal da história, conduzindo, em seu percurso, um espectador submisso e satisfeito. Encenado com deleite por Hitchcock, este “huis-clos” onde a câmera circula no meio de compartimentos escamoteáveis e móveis com rodilhas contém a mais bela “descoberta” da história do cinema ( maquete de Nova York pouco a pouco tomada pela noite) e só visa a um único fim: acentuar de forma surpreendente a tensão e o mal-estar suscitados pela intriga. Nenhum filme de Hitchcock, tirando Psicose ( onde o mal-estar, a intervalos regulares, deságua no terror), engendrou uma atmosfera tão irrespirável. A abjeção dos dois assassinos é elevada a um outro nível, em face da mediocridade dos outros personagens ( notemos que Hitchcock evitou colocar em suas bocas o menor diálogo brilhante). O próprio pai, posto por Hitchcock à parte da mediocridade ambiente, participa do mal-estar geral enquanto vítima pateticamente impotente- depois, é claro, do próprio morto- deste absurdo holocausto. Quanto ao personagem de Stewart ( o professor), ele é aos olhos do diretor o mais culpado de todos. Neste sentido, Festim diabólico é um filme relativamente excepcional na obra de Hitchcock: o espectador não pode se identificar a nenhum dos personagens, a não ser talvez ao morto no baú, que espera ( ?) que seus assassinos sejam reconhecidos e julgados. Festim ocupa um lugar central no seio do edifício hitchcockiano , uma vez que consolida justamente a moral tradicional- universalista em seu princípio- do autor e elimina como monstruosa toda tentativa de uma moral individualista, elitista, que daria a um único ser ou a uma única categoria de seres um lugar à parte na sociedade. O filme sublinha também a responsabilidade do intelectual, cujas palavras, escritos, teorias, paradoxos devem ser considerados, tanto pelo autor como pelos outros, com tanta seriedade quanto se constituíssem atos. Vejamos que o filme não brinca em serviço. Outro aspecto do segredo de Hitchcock: ninguém antes dele ousou ser tão grave, sabendo permanecer extremamente divertido.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

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