sábado, 27 de fevereiro de 2010

Rapidinha




Duas Inglesas e o Amor é obra grandiosa de François Truffaut,melhor do que a maioria de seus filmes mais conhecidos.
Temos delicadeza em máximo grau,junto à ausência de necessidade de ter de provar algo.
A temática do triângulo amoroso encontra-se exposta de maneira mais depurada,tanto na forma quanto no conteúdo.

Os desenlaces das tramas não buscam efeitos.

E o papel do tempo é fundamental, seja para um concreto sentido das perdas, como para um (re)conhecimento de dados do mundo e de si mesmo.Os cadáveres existencialistas e românticos de Truffaut,por exemplo, se fazem históricos,quase pedagógicos.

Mas não existem fáceis soluções,somente buscas,sob o pleno domínio expressivo.Entre o pudor,a naturalidade e a gravidade,sem que uma em nada comprometa a outra .

Motown e Sinatra


Uma surpresa esse cd Motown Celebrates Sinatra, não somente pelo fato de haver uma feliz transposição do jazz para a soul music da gravadora,ou até mesmo uma mesclagem de certa maneira bem sucedida.

Ok.Berry Gordy capricha na produção da abertura cantada por Diana Ross(The Lady is a Tramp),enquanto a mesma diva será capaz de tornar uma música de uma fase menos consistente de Sinatra(Strangers in the night),embora mais popular,um luxo de suavidade e elegância,retirando de cena todo derramamento desnecessário.

Marvin Gaye não cumpre aqui o ofício do mestre e inovador do soul a adaptar outro estilo.Em Witchcraft deixa ele bem claro que é o próprio intérprete de jazz,capaz de vivenciá-lo com intimidade,técnica e feeling,tornando seu momento digno de um Chet Baker.A síncope instrumental e vocal dessa execução e interpretação talvez seja o ponto mais alto do cd.

O mesmo Gaye retomará uma canção de Harold Arlen e J.Mercer na última faixa do disco,fechando a empreitada com o brio necessário(a clássica Onde for my baby).

Os Temptations não passam vergonha em Night and Day,mesmo que saibamos ser impossível comparar sua versão com as melhores da obra de Cole Porter.

O outro ponto(muito)alto vem de Steve Wonder que,em Lonesome Road,apropria-se de um clássico como se fosse uma canção de sua própria autoria,nascida e prolongada a partir de seu próprio estilo.Nem tanto jazz ou mesmo soul,mas um momento by Steve Wonder de pujança e entrega sonora memoráveis.

Há ainda o belo instrumental de Moonlight in Vermont ou o equívoco de Liz Lans tornando a grandiosa In The Wee Small hours in the morning em demasiado lirismo,de canto lírico aqui passadista,a girar para trás a roda da música urbana.

Mas o ainda menino Michael Jackson surpreende e muito com uma All the Things you are a plenos pulmões e gana inserida em arranjos encorpados,repletos de uma magia que nos dá a entender muito bem as razões da Motown ter sido a gravadora que foi(pardon pela tautologia talvez desnecessária).

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Patrimônio atual


Algo surpreendente que o momento áureo da obra de Erasmo Carlos não seja devidamente conhecido no Brasil,com as raras exceções de alguns pesquisadores de música que não se contentam com a facilidade das listas oficiais de uma imprensa reducionista. Talvez por ser um som não tão mpbista para os fãs do gênero(daquilo que teria se convencionado a chamarmos de MPB).Ou muito experimentalista do soul e do samba(e afins) para os fãs de rock-pop.

Já falei nesse espaço da obra-prima Sonhos e Memórias.Por esses dias tenho ouvido Pelas esquinas de Ipanema,se não me engano de 1977.Nesse disco o artista já não conta com os músicos dos Mutantes,por exemplo,mas com outros igualmente de primeira.Trata-se de um trabalho com menos elementos de rock,mas a mistura de soul,samba e etc,não foge ao modelo híbrido e original de seus melhores trabalhos.
Ao contrário dos anteriores em que percebemos uma certa atmosfera dos anos de chumbo da ditadura,embora conservassem o humor e o forte sentido de leveza,Pelas esquinas de Ipanema é abertura ao universo declarada,disco solar.Na Banda dos Contentes já era mais aberto que o lendário Carlos Erasmo e que Sonhos e Memórias.Pelas Esquinas é praieiro,mas de um praieiro moderno,declaradamente flaneur.Passeador e observador do híbrido urbano.

Deixemos claro que a postura de certa abertura não abandona em nenhum momento a crítica ao ego ou à ganância humana,a começar pela música que abre o disco,a famosa Panorama Ecológico,de uma ironia ímpar e classuda. As demais são mais swingadas,usualmente carregando nos ritmos quebrados e permanecendo o contrabaixo como carro chefe,ou seja,com o papel do que seria a guitarra no rock.
Do prólogo ao epílogo,está presente o frescor em alto grau,aliado à inventividade dessa fase.O que confirma que os melhores trabalhos do artista são tão atuais quanto ainda de ponta,à frente,tanto mais por não terem sido tão assimilados quanto seus pares mais aparentes(exceção feita aos trabalhos de certas bandas dos anos 90 e do início desse milênio,que tentaram,embora sem lograr um êxito que sequer as aproximasse,em seus resultados,de suas matrizes).

Disco tão significativo quanto qualquer trabalho da fase áurea de Ben ou de Tim Maia. Erasmo sendo somente mais crítico,como também mais enredado em um sentido de forte teor e torpor marítimo,mas de um lirismo arribado nas esquinas da urbe.Festejante ou delirante,sem perder a sobriedade.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Revisões sem computador





Problemas nesse computador.Não sei quanto tempo irá durar.Enquanto isso,vamos ao menos pincelar alguma coisa.

Por esses dias,algumas revisões de George Cukor:

Nascida Ontem-

Belo filme da Frente Popular norte-americana.

Um dos grandes líderes dessa postura esquerdista parecia ser a atriz Judy Holliday,que trabalhara no teatro com os roteiristas de A Roda da Fortuna,Cantando na Chuva e Dançando nas nuvens.Juntos no cinema ainda fizeram a resistência de Uma Loura por um milhão,ao fim do ciclo de musicais de Hollywood.

Holliday está adorável no papel da loira de voz estridente.A que irá dar o tom para seus amigos na confecção da personagem de Jean Hagen em Cantando na Chuva.

No mais,trata-se de um filme que tematicamente associa saber e ampliação de consciência em uma depuração dos momentos mais políticos de Frank Capra,que de certa forma são retomados em um estilo menos discursivo e mais mordaz.

A forma é límpida e elegante e a formidável cena do jogo de cartas tornou-se memorável.
Filme de forte frontalidade,embora com a finesse característica do diretor.

Núpcias de Escândalo-Já gostei mais.Ao pensar que o cinema americano nos dava Cupido é Moleque Teimoso(Leo McCarey)e Levada da Breca,atribuir unicamente a uma mulher a responsabilidade para um fim de casamento soa envelhecido.Essa mesma passará por um processo que levará ao recasamento,que é o caso na grande obra de McCarey também.

Poderíamos falar que Cukor conduz tudo de uma maneira em que extraia vida de quase todos os personagens em cena,dos de frente e de fundo. Mas o que chama mais a atenção é a presença de Katharine Kepburn,atriz visionária no cinema e que por estar sempre à frente de seu tempo,ou seja,na vanguarda,Cukor aproveita para nos oferecer como a mais bela das jóias em cena mas,certamente,bem mais do que isso.

Passemos posteriormente ao melhor deles:Holiday,chamado no Brasil"O Boêmio Encantador".

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Cárceres,prisões, possíveis libertações(or not)






Há também outras concepções de liberdade como,por exemplo,em um filme um tanto quanto atípico de um cineasta como Robert Bresson chamado Um Condenado à morte escapou.
Em uma conversa com o Júnior falamos dessa obra como uma espécie de "ET" na obra do cineasta e discorremos sobre a representação da relação entre finito e infinito no cinema,sobre a obsessão de Bresson por cárceres,etc.
Júnior considerou esse filme um tanto Rosseliniano na obra do cineasta francês.
Há,sem dúvida,uma dimensão diferenciada da Graça,que não se resumiria,a meu ver,em mera concepção de redenção.
Para entender mais abertamente, inicialmente pegaríamos pelo que essa palavra comportaria de representativa da ideia de gratuidade:"acasos",mistérios,bruscas precipitações,mesmo que físicas no espaço de um filme.
Correntes que se chocam e que aqui provocam um movimento intramundano a obedecer menos a um sistema determinista do que a uma espécie de gratuidade da e nas coisas,dentro de um sentido austero,mas um tanto deslocado em seu eixo pelas brechas de um grande esquema Formal-espiritual.

Em outra fase de sua obra,Bresson viria a filmar a partir de um lugar mais descaradamente materialista,dando ênfase às malhas circulares do mundo,como em O Dinheiro,em que as cadeias provocadas pelo fetiche mediador do título seriam precipitadas ad infinitum,girando em torno de si mesmas até a consumação apocalíptica do final.
Contudo, já não seria grande parte da carreira de Bresson,por seu tipo de austeridade jansenista,uma negação do mundo?Ou seja,a concepção religiosa em questão contida nas demais obras daria o tom,os germes dessa atitude um tanto niilista-apocalíptica.Já não seria o jansenismo uma radical negação do mundo?
O que,de certa forma,confirmaria os finais de filmes como Um Diário de um Padre e A Grande Testemunha,que funcionam como fim de um ciclo de vida carnal.De um ciclo de cada obra em presença.
No primeiro deles o pároco do título precipitará seu fim à base de uma ingestão de alimentos que só lhe provocava o mal(segundo especialistas),sem nada fazer para alterar o fato.
Mas é sobretudo na textura física e tensa das imagens,a sugerir um homem atormentado em seus cerceamentos,um pouco à maneira de um protagonista do romancista russo Dostoievski,que encontraremos as provas mais contundentes.
O final do filme sugere sua libertação,qual seja: a que se daria na e pela morte,pois como já dizia o arquetípico jansenista Pascal:"Cristo estará agonizando até o fim dos séculos".
Contrariamente ao estado de espírito e à ideia do versículo de um apóstolo de Cristo,João,a dizer:"“Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal".
Em A Grande Testemunha,um burro padecerá,ao longo de sua vida,de todos os males da humanidade:crueldade,indiferença..(não importa,por ser tudo parte de um mesmo imbróglio ontológico,não?).E somente encontrará seu repouso ao lado das ovelhas em seu leito,pasto de morte.A paz,enfim.
Em Um Condenado à morte escapou,um tanto ao contrário,a libertação opera dentro de uma possibilidade ainda encarnada e enraizada em um tempo finito,em um mundo histórico,portanto(ainda que dentro de uma postura de Resistência,que é a do protagonista),tal como em um filme de Roberto Rossellini(vide O Milagre,conto do Amor recém saído em dvd,Francisco,arauto de Deus,Viagem à Itália,Era Noite em Roma,Stromboli,...).

Sobre O Condenado:

"Para este herdeiro de Bernanos e Dostoievski,o mundo é uma prisão.É preciso fingir aceitar-lhe os muros,as grades,as portas,as armadilhas,para se descobrir por fim,quando nos julgamos perdidos,à beira do desespero,o caminho da libertação.Tudo o mais é silêncio"(Jean Collet).

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Samba do Crioulo doido





Há também um lado fúnebre no Carnaval.Basta estudar como operava na Idade Média com as ameaças feitas à Morte,com essa logo respondendo e contraatacando.

Hoje já ocorre no Brasil um Carnaval a ser puxado pelo ano inteiro como nos "trilhos do Axé Bahia",o que pode comprometer o estado de espírito de "ritual"anual, a banalizar um momento tão específico(seria como comemorar réveillon e outras coisas mais pelo ano inteiro).

O Eros muito acirrado muitas vezes deixa entrever seu aparente e exato oposto:Tanathos,o instinto de morte.
Já que vivemos muitas vezes um somente presente,a-histórico(a galera sempre pergunta,por exemplo,para quê aulas de história.Dependendo do professor, concordemos),o "carpe diem" se (en)torna no caso brasileiro como mais barroco do que propriamente clássico,às vezes com a póstuma culpa católica ou agora (neo)pentecostal.
No caso clássico,haveria uma alegria atenuada,menos incitante,esbanjante,com a culpa sendo elidida.

Claro que o caso Carnaval estaria relacionado ao fato de um nos esbaldarmos antes de sermos pegos novamente pelo ofício de catar pregos,carregar pedras,do trabalhar muito para ganhar o mínimo para até mesmo respirar.Ou seja,como forma de corrermos de um tipo de morte cotidiana:morte do tempo,do respiro,do arejamento e,com isso,do espaço da imaginação.
Outras vezes as coisas podem funcionar por pura ou impura pobreza de espírito,mas que não deixa de soar como grito de desespero.
E, nos demais, como retomada de um caso de identidade(caso de parte da turma do morro),podendo operar como uma alegria até mesmo genuína, mais honesta,afirmativa.A ser até mais cultura popular,de "dentro para fora",do que propriamente cultura de massa,de "fora para dentro",bombardeada por cegantes holofotes e programações flutuantes do caldeirão bombástico da chamada sociedade do espetáculo.
Enfim,são casos e casos,mas com tudo isso podendo até ser misturado nas passarelas,como em caldo barroco ou neobarroco de um verdadeiro samba do crioulo doido.

Escolhemos uma música feita dentro de um estado de espírito mais desbravador,como a ala de um sanatório mais afirmativo.
(Se puderem baixá-la, vale a pena):

Jeito de corpo(Caetano Veloso)


Eu tô fazendo saber
Vou saber fazer tudo de que eu sou a fins
Logo eu cri que não crer era o vero crer
Hoje oro sobre patins
Sampa na Boca do Rio
O meu projeto Brasil
Perigas perder você
Mas mesmo na deprê
Chama-se um Gilberto Gil
Bode não dá pra enterder
Torna a repetir
Transcende o marco dois mil
Barco desvela esse mar
Delta desvenda esse ar
Não me digam que eu estou louco
É só um jeito de corpo
Não precisa ninguém me acompanhar

Eu sou Renato Aragão, santo trapalhão
Eu sou Muçum, sou Dedé
Sou Zacarias, carinho
Pássaro no ninho
Qual tu me vê na tevê
Falta aprender a mentir
Entro até numas por ti
Minha identificação, registro geral
Carece de revisão
Cara, careta, dedão
Isso não é legal em frase de transição
Sou celacanto do mar
Adolescendo solar
Não pensem que é um papo torto
É só um jeito de corpo
Não precisa ninguém me acompanhar

Delirando



Ela desatinou(Chico Buarque)

Ela desatinou, viu chegar quarta-feira
Acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando
E ela inda está sambando
Ela desatinou, viu morrer alegrias, rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando e ela inda está sambando
Ela não vê que toda gente,já está sofrendo normalmente
Toda a cidade anda esquecida, da falsa vida, da avenida
Onde Ela desatinou, viu morrer alegrias, rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando e ela inda está sambando
Quem não inveja a infeliz, feliz
No seu mundo de cetim, assim,
Debochando da dor, do pecado
Do tempo perdido, do jogo acabado

Inovadores da música brasileira Custódio e Ary Barroso(O Estandarte do Sanatório Geral vai passar)



Deixe essa Mulher sofrer(Ary Barroso)

De preferência com a orquestra de Fon-Fon:

Deixa esta mulher sofrer
Prá ver,
Quanto custa querer bem
A alguém,
Que não sabe avaliar
Que não pode compreender
O verbo amar
O mundo é a escola
Onde a gente lê
O ABC,
Do bem querer
Como já cursei
A escola até o fim
Também sei zombar
De quem zomba de mim

A Ala da turma da educação brasileira(ou a Ala dos palhaços no Brasil)



Rasguei a Minha Fantasia(Composição de Lamartine Babo)


Rasguei a minha fantasia

O meu palhaço

Cheio de laço e balão

Rasguei a minha fantasia

Guardei os guizos no meu coração



Fiz palhaçada

O ano inteiro sem parar

Dei gargalhada,

Com tristeza no olhar

A vida é assim...

A vida é assim...

O pranto é livre,

Eu vou desabafar



Tentei chorar,

Ninguém no choro acreditou

Tentei amar,

E o amor não chegou

A vida é assim...

A vida é assim...

Comprei uma fantasia de pierrô

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Saudoso Weller

Jazz,pop,jobinianas diluídas?
Ao menos,um estilo digno do(e no)nome.

Evocando o ponto alto de Paul Weller,o jazz-pop do Style Council,a um tempo noturno e solar.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

De Repente,no último verão





Montgomery Clift entre o conforto da high society e o mundo nu e cru,a ouvir entre Elizabeth Taylor(atormentada assumida)e Katharine Hepburn(atormentada de "classe",glacial).
Perdido,quase dilacerado entre dois mundos,o da desencarnação:fantasmagórico,glacial e o da encarnação.
Como Mankiewicz era chamado de o cineasta da palavra,Clift estará situado diante da magia ou ilusão do Verbo,de sua duplicidade.Desse poder de estranho feitiço em que as coisas seriam ora ocultadas,ora reveladas.Querendo controlar,dominar um cosmos,ou bem aceitando,tendo de aceitar outra matriz.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Retificação e estranhamento







A formatação desse blogspot está horrorosa.
Tive de reajeitar o post anterior e peço desculpas aos que o leram anteriormente.
Se tiverem paciência,o texto agora parece mais claro(ao menos espero),embora as ideias(para um bom ou mau entendedor)não mudem,em essência.

Ponto 2-

Por esses dias peguei uma discussão entre mulheres,dizendo que "homem não serve pra nada",seriam "muito devagar",essas coisas..
Tentei instigar um pouco para entender melhor a respeito ou,quem sabe, instintivamente reagir,já que seria da classe dos ditos "imprestáveis".
Falaram em mercado de trabalho,no espaço conquistado,na eficiência do sexo feminino,...
Poderia pensar que quando as mulheres exigiram mais direitos,teria sido para futuramente jogar "algo na cara" dos homens?
Pareceu-me mais ressentimento que qualquer outra coisa,rancores guardados por anos,ressentimentos históricos.
Daí que quando se consegue alguma coisa,fica parecendo,no caso citado,como um desses novos-ricos deslumbrados,mas pobres de espírito a entoar o mantra:"Agora é a hora da vingança".

Primeira coisa a se dizer:Tanto ressentimento gera câncer,entre outras coisas.Portanto,tomemos cuidado,usando de maior temperança.
Mas o(contra)argumento "macho" mesmo(e meu)seria o seguinte:
Pra que tanto será que louvamos a tal "eficiência"?De onde teria vindo esse conceito-valor?
Partiríamos primeiramente do pressuposto de que essa tal seria o máximo em si e por si mesma.
Mas ora,esse não teria sido,históricamente falando,um valor e conceito mais masculino do que feminino,já que o tal capitalismo era governado,administrado mesmo por homens?
Ou seja,a máquina teria sido ideológicamente,históricamente mais um valor de macho,de homem "deus(ex)machina" do que propriamente feminino.
Hoje pegar algo que fora produzido,afirmado e autoafirmado por homens,internalizando a coisa,fazendo uso de um discurso(inicialmente de macho e até machista)para afirmar feminismo,não deixa de ser uma grande piada.Mas de péssimo gosto.
Prefiro que as moças,mulheres,meninas(ou gatinhas)reafirmem sua singularidade,que venham a acrescentar algo novo.
Não somente reproduzir,repetir mecanicamente algo dado,inclusive ideológicamente, sem se saber bem o porquê,inclusive dos mecanismos mais escusos implicados,de um(péssimo)legado masculino.
Ou,que venham também as escritoras,Kafkas mulheres na perplexidade,mas com a ótica feminina criativa,criadora(e não somente reprodutora do que já está mais do que programado).

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Do Baú



Depois de tentar ajeitar um rebelde blogspot,aí vai o comentário(novamente).




Essa crônica publiquei em jornal daqui à época de um alvoroço em torno do filme Cidade de Deus:



"Cidade antes e após o Oscar"

"Vira e mexe o caso Cidade de Deus volta à pauta, sobretudo depois de indicado ao Oscar. Procuraremos entender o que teria rondado sua indicação. Os “méritos” seriam, antes de tudo,técnicos or not?
Por uma narrativa de surto ou aparência de complexidade,fragmentária,que abarcaria vários acontecimentos a um só tempo sem perder uma coesão,por uma fluência dos diálogos(coisa rara no que nos acostumamos a chamar de filmes nacionais?),ou pela fotografia chamativa, “blindada”?
Cidade de Deus não passaria de uma bula(xerocada)de várias maneiras de se fazer cinema.Teríamos desde o Quentin Tarantino,de Pulp Fiction,passando pelo John Woo (artesão de filmes de ação)até um Martin Scorsese,e o quê mais.
Todos mal e porcamente filtrados,não assimilados.Ou bem,se assimilados,para “um bem fora”de contexto.
Talvez invertamos a equação e veríamos a cadela Baleia comendo seu próprio rabo, como em um volteio histórico nada barroco.
Tratar-se-ia antes de um tipo de parasitagem,mas com a chamada,o estofo do chamado filme ”social”. O personagem que narra a história como o indivíduo que,escolhendo o caminho do “Bem”,consegue safar-se daquele estado de coisas,do modus-vivendi em questão.
Tornando-se uma espécie de jornalista,capaz de registrar à distância os acontecimentos,sem se misturar a eles.
Como é dele o ponto de vista da instância narrativa,o que nos coloca a seu lado, poderia sê-lo também o do cineasta?Sentimo-nos aliviados por tanta violência que, afinal,não nos diria lá tanto respeito.
Certa grandiosidade épica do “espetáculo”,do estranho parque de diversões videoclíptico do terror, passaria a configurar-se como forma de alívio(não confundir com catarse aristótélica),para esse espectador que não se comprometeria com nada do que vê.
Nada de catarse,repetimos.Muito de sessão de descarrego cultural.
Temos,assim,uma visão “poluída” de miséria, blindada para nós em um produto que funcionaria mais como produtor de adrenalinas,ou de possíveis prêmios,mas,antes de tudo isso,como reprodutor,reificador de estereótipos do “medonho”(ou de medonhos estereótipos?),que não problematizaria nunca seu olhar frente aos excluídos.
Quem seria esse “Outro”,afinal, para essa classe-média que assesta suas lentes,a produzi-lo e a digeri-lo?
Talvez uma espécie de(neo)demônio,representado por um recurso naturalista apropriado pelo mítico da narratividade fragmentada contemporânea,que nos assustaria.E que,justo por isso,deveria ser expropriado como ser e como linguagem,já que dele deveríamos tomar devida distância como herdeiros que seríamos de um “bem maior”(burguês-"cristão"?).
Pessoas das quais nos aproximamos somente pela mediação de um parque de diversões do terror,ou do delírio virtuosístico.
Nesse caso,sugiro aos que se dizem artistas,antes de se arriscarem a temas do tipo,que lessem o poema Operário no mar,de Carlos Drummond de Andrade,somente como iniciação em um processo de aprendizagem do que diz respeito à problematização de um abismo entre grupos,classes.Pela mediação do que seria a linguagem artística.
Mas,por enquanto,vão(e vamos)ficando por aí na tela onde trafegam nossos pesadelos jornalísticos e de classe mais íntimos e mais (pós) "modernos".
A se julgar por Cidade de Deus(e outros filmes nacionais),o pobre no Brasil é aquele portador de uma carga de violência e de ameaça, que deveria ser exorcizado em volteios virtuosísticos de câmera,ou em fotografia épica,da fosforescência dos supermercados.
O supermercado, dentro do âmbito burguês, trazendo a sensação de “segurança”,pela claríssima visibilidade,dentro de uma tipo de cultura,de um tipo de ótica,esgarçada em si mesma.
Como reduto de segurança do espectador,o primeiro dos violentos.
Como reduto violento dos que perpretam esse tipo de cinema.
O prolongamento Oscar nos dá a ver o alcance para o exterior de uma imagem(neo)folclórica de um país chamado Brasil,com uma semelhança de linguagem em relação a dos modelos norte-americanos.
Assim,devolvemos para o exterior,à maneira de autômatos Ets,o que nos teria sido dado,tão pronto: uma velha condição de colônia,nesse caso do espetáculo e nos regozijamos com a esmola.
Fluxo de um país agora rico em “técnica”, em ”qualidade”,ineditamente sintonizado com um tempo atual do “progresso”.
Mas pobre,no caso em questão,de espírito".

Crônica ou(e)poesia





A partir de uma notícia de jornal,Carlos Drummond de Andrade confunde as instâncias da crônica e do poema:


Desaparecimento de Luísa Porto





Pede-se a quem souber
do paradeiro de Luísa Porto
avise sua residência
À Rua Santos Óleos, 48.
Previna urgente
solitária mãe enferma
entrevada ha longos anos
erma de seus cuidados.


Pede-se a quem avistar
Luísa Porto, de 37 anos,
que apareça, que escreva,
que mande dizer
onde está.
Suplica-se ao repórter-amador,
ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte,
a qualquer do povo e da classe média,
até mesmo aos senhores ricos,
que tenham pena de mãe aflita
e lhe restituam a filha volatilizada
ou pelo menos dêem informações.
É alta, magra,
morena, rosto penugento, dentes alvos,
sinal de nascença junto ao olho esquerdo,
levemente estrábica.
Vestidinho simples. Óculos.
Sumida há três meses.
Mãe entrevada chamando.


Roga-se ao povo caritativo desta cidade
que tome em consideração um caso de família
digno de simpatia especial.
Luísa é de bom gênio, correta, meiga, trabalhadora, religiosa.
Foi fazer compras na feira da praça.
Não voltou.


Levava pouco dinheiro na bolsa.
(Procurem Luísa.)
De ordinário não se demorava.
(Procurem Luísa.)
Namorado isso não tinha.
(Procurem. Procurem.)
Faz tanta falta.


Se todavia não a encontrarem
nem por isso deixem de procurar
com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa
e talvez encontrem.
Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.
Luísa ia pouco a cidade
e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.
Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,
É Rita Santana, costureira, moça desimpedida.
a qual não da noticia nenhuma,
limitando-se a responder: Não sei.
O que não deixa de ser esquisito.


Somem tantas pessoas anualmente
numa cidade como o Rio de janeiro
que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.
Uma vez, em 1898,
ou 9,
sumiu o próprio chefe de polícia
que saíra a tarde para uma volta no Largo do Rocio
e até hoje.
A mãe de Luísa, então jovem, leu no Diário Mercantil,
ficou pasma.
O jornal embrulhado na memória.
Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,
a pobreza, a paralisia, o queixume
seriam, na vida, seu lote
e que sua única filha, afável posto que estrábica,
se diluiria sem explicação.


Pela ultima vez e em nome de Deus
todo-poderoso e cheio de misericórdia
procurem a moça, procurem
essa que se chama Luísa Porto
e é sem namorado.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão. Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa
e a paz intima
conseqüente às boas e desinteressadas ações,
puro orvalho da alma.


Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.
O santo lume da fé
ardeu sempre em sua alma
pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.
Ela não se matou.
Procurem-na.
Tampouco foi vítima de desastre que a polícia ignora
e os jornais não deram.
Está viva para consolo de uma entrevada
e triunfo geral do amor materno
filial e do próximo.


Nada de insinuações quanto à moça casta
e que não tinha, não tinha namorado.
Algo de extraordinário terá acontecido,
terremoto, chegada de rei.
As ruas mudaram de rumo,
para que demore tanto, é noite.
Mas há de voltar, espontânea
ou trazida por mão benigna,
O olhar desviado e terno, canção.


A qualquer hora do dia ou da noite
quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.
Não tem telefone.
Tem uma empregada velha que apanha o recado
e tomará providencias.


Mas
se acharem que a sorte dos povos é mais importante
e que não devemos atentar nas dores individuais,
se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,
não faz mal, insultem a mãe de Luísa,
virem a pagina:
Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,
erguerá a enferma, e os membros perclusos
já se desatam em forma de busca.
Deus lhe dirá :
Vai,
procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.

Ou talvez não seja preciso esse favor divino.
A mãe de Luísa ( somos pecadores )
sabe-se indigna de tamanha graça.
E resta a espera, que sempre é um dom.
Sim, os extraviados um dia regressam
— ou nunca, ou pode ser, ou ontem.
E de pensar realizamos.
Quer apenas sua filhinha
que numa tarde remota de Cachoeiro
acabou de nascer e cheira a leite,
a cólica, a lágrima.
Já não interessa a descrição do corpo
nem esta, perdoem, fotografia,
disfarces de realidade mais intensa
e que anúncio algum proverá.
Cessem pesquisas, rádios, calai-vos·
Calma de flores abrindo
no canteiro azul
onde desabrocham seios e uma forma de virgem
intata nos tempos.
E de sentir compreendemos.
Já não adianta procurar
minha querida filha Luísa
que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo
com inúteis pés fixados, enquanto sofro
e sofrendo me solto e me recomponho
e torno a viver e ando,
está inerte
gravada no centro da estrela invisível
Amor.