quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Fotos de Ordet(Dreyer)e O Eclipse(Antonioni)
Termos como "incomunicabilidade" viraram, durante um tempo, quase uma moda(no cinema, sobretudo quando se tratava de Antonioni).
No caso de Drummond,acrescentaríamos aporia.O eu todo retorcido descobre que essa seria uma condição mais ampla do que um mero "sentimento de mundo", auto-centrado em demasia.(Embora muitos não percebam).
Em O Eclipse,de Antonioni, o frêmito surdo-mudo se converte em grito particular "com os objetos",nesse encontro milagroso da dimensão objetiva com a subjetiva,o que catalizaria o dito eclipse do título.
Em Ordet( A Palavra),de Carl Dreyer, o Verbo se faz literalmente carne.Mas é preciso um suposto "louco" e uma criança para romperem essa crosta até mesmo material,esse abismo de ressecamento de homens para consigo próprios, ou para com os demais.Observe a ausência de uma abertura na interpretação dos atores.
Proferir em estado de entrega e convicção é o que constituirá a "Palavra-grito"do título,desencadeadora de novos estados geológicos da matéria,dentro de uma ausência de dicotomia espírito/matéria.
O Verbo faz a drenagem.Como no início era o Verbo:faz-se o Mundo.
Canto Órfico
A dança já não soa,
a música deixou de ser palavra,
o cântico se alongou do movimento.
Orfeu, dividido, anda à procura
dessa unidade áurea, que perdemos.
Mundo desintegrado, tua essência
paira talvez na luz, mas neutra aos olhos
desaprendidos de ver; e sob a pele,
que turva imporosidade nos limita?
De ti a ti, abismo; e nele, os ecos
de uma prístina ciência, agora exangue.
Nem tua cifra sabemos; nem captá-la
dera poder de penetrar. Erra o mistério
em torno de seu núcleo. E restam poucos
encantamentos válidos. Talvez
um só e grave: tua ausência
ainda retumba em nós, e estremecemos
que uma perda se forma desses ganhos.
Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe,
braços do não-saber. Ó fabuloso
mudo paralítico surdo nato incógnito
na raiz da manhã que tarda, e tarde,
quando a linha do céu em nós se esfuma,
tornando-nos estrangeiros mais que estranhos.
No duelo das horas tua imagem
atravessa membranas sem que a sorte
se decida a escolher. As artes pétreas
recolhem-se a seus tardos movimentos.
Em vão: elas não podem.
Amplo,
vazio
um espaço estelar espreita os signos
que se farão doçura, convivência,
espanto de existir, e mão completa
caminhando surpresa noutro corpo.
A música se embala no possível,
no finito redondo, em que se crispa
uma agonia moderna. O canto é branco,
foge a si mesmo, vôos! palmas lentas
sobre o oceano estático: balanço
de anca terrestre, certa de morrer.
Orfeu, reúne-te! chama teus dispersos
e comovidos membros naturais,
e límpido reinaugura
o ritmo suficiente, que, nostálgico,
na nervura das folhas se limita,
quando não compõe no ar, que é todo frêmito,
uma espera de fustes, assombrada.
Orfeu, dá-nos teu número
de ouro, entre aparências
que vão do vão granito à linfa irônica.
Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa
atmosfera do verso antes do canto,
do verso universo, latejante,
no primeiro silêncio,
promessa de homem, contorno ainda improvável
de deuses a nascer, clara suspeita
de luz no céu sem pássaros,
vazio musical a ser povoado
pelo olhar da sibila, circunspecto.
Orfeu, que te chamamos, baixa ao tempo
e escuta:
só de ousar-se teu nome, já respira
a rosa trimegista, aberta ao mundo.
(Carlos Drummond de Andrade, ombreando Eliot).
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