terça-feira, 17 de novembro de 2009
Gênio oculto
Diretor tão bom ( tão genial, eu diria) quanto Howard Hawks ou John Ford, King Vidor é o menos lembrado desses.Decidiram por lançar seu O Pão Nosso no Brasil e não foi a Continental(Maravilha!).
Como já havia ocorrido com Aleluia,que fora o primeiro filme da história feito somente com atores negros,Vidor apostou em um projeto totalmente desacreditado.Na verdade, aqui ele chegou a hipotecar a própria casa para poder rodar essa obra feita em período de grande crise:a Depressão norte-americana.
Os estúdios que se preocupavam com as lindas roupas dos atores certamente não queriam embarcar em algo do tipo. Como se tratava desse período difícil da história norte-americana,Vidor considerou que seria mesmo uma prostituição filmar de maneira tão esquiva. Preferiu apostar em algo sobre as possibilidades de um povo vencer em meio às agruras. Que é onde entrava o espírito de cooperação entre os homens de uma comunidade em uma espécie de socialismo primitivo.
Se o diretor em O Pão Nosso optou por filmar essas camadas populares em feroz luta de vida e sobrevida, qual seria a diferença, por exemplo, para um filme de John Ford,especialista em filmar uma América de homens anônimos,mas na verdade responsáveis pela construção em surdina de um país?
Um ponto capital é que, em Vidor, não encontramos rastros de sentimentalidade. Sua emoção brota sempre do mais “bruto”. Por outra, o diretor não perde tempo com nada como forma de fazer seu filme avançar.Sempre direto no ponto,com cortes por vezes mais rápidos,deixando as conclusões de cada cena para o espectador.Assim como Rivette dizia de Rossellini:”não enfatiza”.Contudo,com uma precisão total em cada tomada ou passagem.
Em uma cena do trabalho árduo dos personagens,esforço que seria responsável por devolver a água para aquela comunidade que estaria morrendo,um dos personagens enquanto capina diz algo como:”é assim mesmo,não pense que estamos em um estúdio”.Ou seja, uma cutucada de Vidor ,que foi o grande antecipador de Rossellini nessa recusa das “verdades”formadas nos seios das grandes companhias.Mas,principalmente, por essa disposição de filmar quase infinitamente um esforço de trabalho de homens,que é de onde extrai uma espécie de nova poesia para Hollywood: uma poesia bruta,enraizada na terra e na vida,como aquela dimensão telúrica e de pó do filme Viagem à Itália,de Rosselllini que, diante do enfrentamento com as crostas opacas do espaço/tempo,geraria uma reorganização geológica, material no cosmos do filme.Em ambos os casos,um (re) encontro epifânico entre corpos-almas,enquanto Vidor enfatiza a àgua como o lugar da drenagem da terra e dessas almas.
Um ponto substancial da obra encontra-se nas passagens do triângulo amoroso.O protagonista é casado,mas diante das adversidades por que passava a comunidade,sente-se derrotado.Como era o líder,o restante que lá residia dele esperava alguma atitude. O filme vai sugerindo com nenhuma palavra e muito dom de sutileza seu paulatino desinteresse por aquilo tudo que ele mesmo um dia havia erguido,seu sentimento de impotência.Reside na comunidade uma outra garota e não faltará muito para nos depararmos com uma espécie de novo Aurora,de Murnau.Só que, sem quase palavra alguma ou mesmo acompanharmos qualquer cena de abraço ou beijo entre o novo casal.Sabemos,no entanto, de tudo que está se passando:o sentimento de fracasso total do homem,sua fuga/atração para um outra vida,o desespero de sua esposa...Tudo exposto quase invisivelmente,pois Vidor aposta ao máximo no extracampo e na sugestão, sem se preocupar em “revelar” ou explicar algo.É a genialidade da expressividade em surdina e de seu poder de documentação,íntegro e de total respeito pela sensibilidade do espectador.
Essa bruta poesia nos convida a uma expressividade reinventada,mais espiritualidade que poetização,o que o aproximaria, por esse lado, mais do cinema de um Howard Hawks do que de um John Ford. Mas em todos esses casos,estamos diante de “modestos” épicos do erguimento ou reerquimento de uma nação, de seu espírito desbravador, aos quais King Vidor empresta toda sua gama de incontornável generosidade, sua considerável e íntegra imparcialidade de expressão e seu imenso gênio visionário em antecipar com toda gana uma parcela mais que determinante do (mais que) dito cinema moderno, o chamado neo-realismo italiano.Mais que um gênio das ocultezas,um diretor ainda um tanto quanto oculto.
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