terça-feira, 11 de agosto de 2009

Teatralidade e Experimentação




Acabo de rever O Aviador, de Martin Scorsese.
Howard Hughes, segundo Scorsese, não se contentou em ser um grande devaneador. Para esse personagem sonhar muito não bastava.. Era preciso materializar cada ideia, cada sonho, por mais “demente” que parecesse a princípio. E somente assim ele pôde inovar a indústria de aviões.
Também para muitos artistas se contentar com o que se dita como sendo “razoável” é pouco, sendo necessário muita autonomia e até mais do que ela. Howard Hughes era muito para Howard Hughes, assim como Picasso era muito para si mesmo, Mozart, Beethoven, Van Gogh,etc...
O limiar entre o gênio e a insanidade pode se afrouxar, mas Scorsese se interessa nisso menos como conflito do que como somatório de elementos, de caracteres. Para o filme parece impossível expurgar uma dessas facetas sem que o reflexo seguinte saia prejudicado.
Howard Hughes, segundo Scorsese, é um pouco como Tucker para Coppola. Não se acomoda no senso comum, ou com unanimidades “pré-fabricadas”. Traça seu caminho de autenticidade pagando o preço que for, sonhador e desbravador que é.
A cena das chamas no avião que pegam vertiginosamente esse homem em delírio extremado, quem sabe mesmo num instante do afã de se igualar a Deus, talvez seja um desses momentos dos vestígios do catolicismo de Scorsese. Chamas sideradas que também abrem o filme Cassino lançando de cara o protagonista no abismo. Hughes faz dos aviões, como bem exprime a montagem, uma espécie de prolongamento dos seios das mulheres que pensa amar. Ora, esse homem de grandes taras( sobretudo, de taras de criação) é também alguém absorto em delírios de pureza como se pode ver em sua higienização obsessiva das mãos ou na ingestão excessiva de leite enquanto renega o álcool.
O andamento da montagem é vertiginoso como deve ser o da cabeça de um desbravador. Acusar o filme de apresentar tiques seria ignorar a natureza teatral mesma envolvida no empreendimento. Hughes a todo o momento deve submeter a pedra à marteladas, tal como Michelangelo que assim o fazia a fim de moldar suas obras de arte. E as obras no caso são, claro, aviões e filmes. Sua história é, portanto, a de um confronto eterno com o mundo como forma de abrir caminhos e inovar. E o gênero dramático, teatral, aqui em fronteira tensa e necessária com o cinema, é fulcrado justamente em confrontos. É através de seu corpo de performances que Hughes deve se engajar para confrontar o Senado americano, a rede de monopólios de aviões e, sobretudo, os céticos ou cínicos de plantão que não crêem ou não querem crer em seus projetos.
Talvez por isso principalmente O Aviador tenha desagradado a muitos, por ser um filme de um homem de crenças. Ou seja, a fé pressupõe ver algo a princípio visto como impossível o “outros olhos”, o que para a “chiqueza cética” com a qual nos acostumamos e nos condicionamos, não deixa de ser imperdoável. Há, dessa forma, a relação do protagonista que projeta filmes para si mesmo em sua sala particular com a ideia de algo que se projeta no futuro, assim como desses aviões com os vôos contundentes de uma águia a desbravar trajetos.
Tudo isso, ao contrário de muitos filmes do diretor dos Caçadores da Arca Perdida, não abandona a problematização frente ao que poderia se converter em uma espécie de fuga para frente. Por outro lado, não daria para se prender obsessivamente no que fatalmente se tornaria um injustificado moralismo. Fez-se necessário, aqui, encarar de frente esse estágio de se estar sempre na corda bamba, diante do abismo (inclusive físico) em meio a uma constante batalha.
E assim se deu com o próprio Scorsese nessa montagem vertiginosa em uma obra extremamente arriscada, sem medo de desagradar. Fez, como em Cassino, um épico que não ousasse somente em termos de roteiro, mas globalmente experimental, sem a inibição de parecer excêntrico a olhos e mentes mais acomodadas, que esperariam sempre “outra coisa”, seja do diretor. Seja da vida.
Em O Aviador, sem dúvida Scorsese se dispos por inteiro a dar sua cara(e a do cinema), à tapa.

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