quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Sagrado e o profano em Douglas Sirk-notas








Por vezes subestimado em meios pretensamente “cultos”(excetuando o caso Almodóvar),o bom melodrama tende a alternar com mestria as instâncias do profano e do sagrado.O bom cinema,tendo compreendido tais fundamentos, chegou a explorá-los com brio,como no caso de Douglas Sirk . É o que ocorre em Tudo o que o céu permite, recém saído pela Versátil.

Sirk, também diretor de teatro, sabia do lugar e do papel da encenação na vida comum e passou a duplicar tal teatralidade em cinema. Sua obra constitui-se como uma forma em que contradições, não somente do sentimento humano, mas de um modo de vida calcado em “dogmas” agregados a pirâmides sociais,comparecem a partir de entrechos românticos ou trágicos.

No filme Tudo o que o céu permite, o diretor trabalha a saturação das cores e dos ambientes, de uma maneira em que a cenografia aprisione os protagonistas em âmbitos burgueses, ao passo que tal cultura, supostamente “sagrada”, instala-se, de fato, como profana. A fotografia do filme configura-se como uma pintura detalhada entre cartão postal e um grande quadro-painel, como igualmente alternantes serão as instâncias do profano e do sagrado.No primeiro caso,um puritanismo hipócrita,a imobilidade conservadora em iconografia de materialismo intensivo e frívolo. Enquanto o sacro se manifestaria, paradoxalmente,na simplicidade de desejos que, renegados por um tipo de cultura,se afirmariam como sinceridade.

Nesse sentido, Rock Hudson, o homem “fiel a si mesmo”, (como o Clint Eastood de As Pontes de Madison), nas regulares elipses de sua presença na obra, irá se revelando, aos poucos, vulnerável em sua fortaleza, como no caso da outra obra citada. O desejo e o amor- inclusive pelas plantas- são seus únicos habitats.O que não será perdoável pela cultura de sua amada, pelo que o dinheiro e suas regras implícitas e deveras estanques impõem como padrões únicos de vida, crença e comportamento.

Pode até parecer que se trata de um filme quase didático,o que poderia comprometer seu valor estético.Na verdade, é um dos trabalhos mais ácidos e diretos do diretor Douglas Sirk, em que a formação de uma nação,culturalmente gerada na crença de sua suposta predestinação aliada ao fetiche monetário é aqui posta em xeque,o que, contemporaneamente, seria atualizado em uma falsa predestinação a - histórica,como, por exemplo, a oriunda de uma ideologia neoliberal.

Na obra em questão, há um trabalho fotográfico com sombreamentos a tornar os protagonistas, por vezes,“fantasmas”,ou seja,seres deslocados em meio à cultura retratada. Nesse caso, o sacro da imagem ameaça a se impor, abandonando o púlpito de igrejas conluiadas com a burguesia e seu fetiche monetário, para logo ingressar na vida do cinema,enquanto cultura não nobiliárquica, mas popular.O jogo iconográfico passa a lançar questões, uma vez que ambientes de aparência idílica, mas de fortes tonalidades,apresentam duplas facetas,em que o Jardim do Éden norte-americano poderá ser também o seu oposto,em período (já) de “Queda do homem”.

Ou seja, nos momentos de ambiência burguesa, os “palácios” são filmados em cores saturantes. Nos do casal,a fotografia matiza sua paleta em uma configuração que, humana e espiritualmente,subtrai a inicial fosforescência de iluminação -,a mesma que comparece, não raro, em ambientes retratados no limite da histeria.

As sombras do esteta nos instantes em que o casal se encontra ou se desencontra em dor retratam certo alheamento crescente daquilo que não foi predestinado, mas, a rigor, predeterminado como Absoluto na imagem, enquanto cultura burguesa do parecer. De outro lado, luzes mais baixas, entre o segredo intimista e a fantasmagoria, de forma que crenças e sentimentos constituem-se como implausíveis para mentes estanques, segmentadas. Nesse sentido, a TV com que os filhos,a todo custo,querem presentear a mãe será um elemento a mais na cenografia, a poder tragar os personagens para o seio de um jogo de reflexos a oprimir seres em cena, como personalidades a serem lançadas para longe de si mesmas ou de "um algo mais”,como contraditório atestado de prisão e de solidão aparentemente irreparáveis.

Entre os espelhos fosforescentes e a ruptura para uma nova definição iconográfica "de si" na imagem, a obra obedecerá a um ritmo que tende ao vertiginoso. No tempo, rostos passam a refletir-se com maior definição de serenidade,em contraste aos ambientes saturados dos “palacetes”. Sirk filma closes estáticos,serenos como ordem paralela do tempo e das crenças.

Encenação, artifício, mundo e sacralidade podem encontrar um eixo complexo em “Tudo o que céu permite”,mas definidor de posturas ,em que os reflexos dos protagonistas chegam a não ser de todo descarnados, por preexistirem como desejo,embora filmados e restituídos em recortes de simplicidade. A teatralidade e o delírio kitch passam a um outro lado do espelho, nas sombras projetadas de cinema em vias de definição de convicções, o que implicaria outra iconografia.
Em meio ao profano burguês e à cultura de massas,a obra flerta com um novo tipo de sagrado, a transitar de certas igrejas – a desdobrarem seu sobrecarregamento imagético para o meio burguês - até adentrar novos espaços. Ou seja, para um tipo de cultura popular propiciada por certo cinema do período.

Entre a hipnose da cultura do ter e do parecer, e a hipnose do desejo e do afeto projetados como novo recorte ,Sirk abraça, claro, a segunda, cioso de ser ela também imagem, embora subtraída de certos elementos dados. Quando, por exemplo,a direção acena em câmera baixa para um “terra a terra”, em que rostos despidos, cristalinos, e em baixo tom passam a falar uma outra linguagem -inclusive verbal- entrecortada por raros silêncios -sacros.

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