sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A Torre Sem Degraus









“No térreo se arrastam possuidores de coisas recoisificadas.

No primeiro andar vivem depositários de pequenas convicções, mirando-as remirando-as com lentes de contato.
No segundo andar vivem negadores de pequenas convicções, pequeninos eles mesmos.

No terceiro andar- tlás tlás- a noite cria morcegos.
No quarto, no sétimo, vivem amorosos sem amor, desamorando.

No quinto, alguém semeou de pregos dentes de fera cacos de espelho a pista encerada para o baile das debutantes de 1848.

No sexto, rumina-se política na certeza-esperança de que a ordem deve mudar, precisa mudar deve mudar há de mudar, contanto que não se mova um alfinete para isso.

No oitavo, ao abandono, 255 cartas registradas não-abertas selam o mistério da expedição dizimada por índios Anfika.
No nono, cochilam filósofos observados por apoftegmas que não chegam a conclusão plausível.

No décimo, o rei instala seu gabinete secreto e esconde a coroa de crisóprasos na terrina.

No décimo primeiro, moram (namoram?) virgens contidas em cintos de castidade.
No décimo segundo, o aquário de peixes fosforescentes ilumina do teto a poltrona de um cego de nascença.

Atenção, décimo terceiro. Do vigésimo quarto baixará às 23 h um pelotão para ocupar-te e flitar a bomba suja, de que te dizes depositário.

No décimo quarto, mora o voluntário degolado de todas as guerras em perspectiva, disposto a matar e a morrer em cinco continentes.

No décimo quinto, o último leitor de Dante, o último de Cervantes, o último de Musil, o último do Diário Oficial dizem adeus à palavra impressa.

No décimo sexto, agricultores protestam contra a fusão de sementes que faz nascerem cereais invertidos e o milho produzir crianças.

No décimo sétimo, preparam-se orações de sapiência, tratados internacionais, bulas de antibiótico.
Não se sabe o que aconteceu ao décimo oitavo, suprimido da Torre.

No décimo nono, profetas do Antigo Testamento conferem profecias no computador analógico.
No vigésimo, Cacex Otan Emfa Joc Juc Fronap FBI Usaid Cafesp Alalc Eximbank trocam de letras, viram Xfp, Jjs, IxxU e que sei mais.

No vigésimo segundo, banqueiros incineram duplicatas vencidas,e das cinzas nascem novas duplicatas.

No vigésimo terceiro, celebra-se rito do boi manso, que de tão manso ganhou biografia e auréola.
No vigésimo quarto, vide décimo terceiro.

No vigésimo quinto, que fazes tu, morcego do terceiro? Que fazes tu, miss adormecida na passarela?

No vigésimo sexto, nossas sombras despregadas dos corpos passeiam devagar, cumprimentando-se.

O vigésimo sétimo é uma clínica de nervosos dirigida por general-médico reformado, e em que aos sábados todos se curam para adormecer de novo na segunda-feira.

Do vigésimo oitavo, saem boatos de revolução e cruzam com outros de contrarrevolução.

Impróprio a qualquer uso que não seja o prazer, o vigésimo nono foi declarado inabitável.

Excesso de lotação no trigésimo: moradores só podem usar um olho, uma perna, meias palavras.
No trigésimo primeiro, A Lei afia seu arsenal de espadas inofensivas, e magistrados cobrem-se com cinzas de ovelhas sacrificadas.

No trigésimo segundo, a Guerra dos 100 anos continua objeto de análise acuradíssima.

No Trigésimo quarto, um ladrão sem ter o que roubar rouba o seu próprio relógio.

No trigésimo quinto, queixam-se da monotonia deste poema e esquecem-se da monotonia da Torre e das queixas.

Um mosquito é, no trigésimo sexto, único sobrevivente do que foi outrora residência movimentada com jantares óperas pavões.
No trigésimo sétimo, a canção

filorela amarlina
louliseno i flanura
meliglírio omoldana
plunigiário olanin.

No trigésimo oitavo, o parlamento sem voz, admitido por todos os regimes, exercita-se na mímica de orações.

No trigésimo nono, a celebração ecumênica dos anjos da luz e os anjos da treva, sob a presidência de um meirinho surdo.

No quadragésimo, só há uma porta uma porta uma porta.
Que se abre para o quadragésimo primeiro, deixando passar esqueletos algemados e conduzidos por fiscais do Imposto da Consciência.

No quadragésimo segundo, goteiras formam um lago onde bóiam ninféias,e ninfetas executam bailados quentes.

No quadragésimo terceiro, no quadragésimo quarto, no... (continua indefinidamente)”

( Carlos Drummond de Andrade)

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