sábado, 25 de setembro de 2010

Cinema da exceção




O Centerplex daqui passa o último Shyamalan chamado O Último Mestre do Ar, ao que dá pra pensar: enfim, algo que deve valer o sacrifício de ir ao único-e fora de mão -espaço instituído de projeção cinematográfica da cidade. Até que, por mais uma vez, dou de voz com a espécie de secretária eletrônica a me informar e ditar: dublado. O que entendo por nublado.
Certa feita, desloquei de minha casa, que fica bem ao largo do cinema, passando pelo fétido córrego da Universidade - onde está escrito f...leia-se fedorento mesmo - para assistir a um Tim Burton,também nublado. Sessão da tarde é a sensação. Assisti (melhor, não assisti) com tamanha raiva, que somente uns meses a seguir viria a reconhecê-lo como valor de obra (Trata-se de A Fantástica Fábrica de Chocolates).
Há os nacionalistas a dizer que gostar de filme dublado é valorizar a nossa língua.Ok, contanto que se trate de filme brasileiro,já que o dublador não participou do processo de filmagem e nisso, mal deve ter captado o estado de espírito da coisa,nublando. Isso pra dizer do caso de direção,ou seja, dos que merecem ser tratados como diretores nesse cenário.Pois em outros casos tanto faz e confesso que aprecio as dublagens em animações. A turma daqui é muito talentosa, e se a animação é boa, melhor que as crianças entendam, mesmo sendo nós as tais “crianças”.

Ninguém tem nada a ver com uma leve frustração de um blogário. O que pode ser dito é que Shyamalan, até certo tempo, não significaria muita coisa pra esse espaço. Aliás, também mal assistia a seus filmes, como ocorre com a leitura de um Paulo Coelho, guardadas as devidas(e enormes) proporções, inclusive de vendas.

Com Sinais, as coisas mudam como representatividade para esse espaço, em que detenho algum tipo de poder no palavrório. A mídia, até então, tratava o diretor de herança indiana como um novo Spielberg. Mas, ao assistir ao filme Sinais, os alienígenas mal compareciam. Tratava-se de uma ameaça real, ou de uma subjetividade que ganharia um cunho mais coletivo - não necessariamente coletivista? Em todo caso,um aspecto que se repetiria por várias vezes em sua obra.

Nessa em questão, o ET não é glorificado,idolatrado, como um belo “de fora” a nos salvar, herdeiro da política espiritualista da Nova Era, mais conhecida como New Age. Tal ser, mitificado em outros cineastas,como tentativa de salvação também das bilheterias de cinema, comparece em vestígios,ou imagens em reflexos. Tampouco suscitará,em si mesmo, prova de grande perversidade.Somente um estranhamento a se situar entre certo horror, tênue piedade,ou sei lá o quê mais, o que dependerá da argúcia de cada espectador. Tal estado representativo, aparentemente “nulo”, carrega consigo algumas questões. Dentre elas, se o ser que nos aparece como refletido “Em algo” seria, ele mesmo,nada além de um estranho em nós, como reflexo, a rigor,“De algo”?

O fato é que o poder de nosso olhar,sua onipotência condecorada em fábulas habituais é,no mínimo, relativizado. Os únicos a poder parir alguma fábula viável hoje - um pouco como no caso do cinema iraniano de Abbas Kiarostami-, seríamos nós, os espectadores,uma extensão de Mel Gibson, o protagonista impotente, ao contrário dos papéis que o consagraram?

Alguns dirão que nada disso importa, que não seria essa uma “crítica séria”, se é que se trata mesmo de algo com objetivo tão “ambicioso e quase inalcançável”. Em todo caso, prossigamos teimosos. O que foi dito até o momento já não seria alguma das constatações a serem feitas em um sucesso como O Sexto Sentido? Onde, a rigor, importaria menos a revelação ou reviravolta do roteiro, do que a constatação de que o olhar do protagonista e, por extensão, o nosso em uma fábula é paulatinamente desconstruído. Bruce Willis, psicólogo,homem do suposto saber que, em seu olhar conjugado ao do espectador, pensa ver os seres, entre eles, uma criança que, por sua feita, e talvez por certa nudez no olhar,é quem deve enxergar -não ver- um pouco melhor.

Em A Vila, o diretor, com maior independência após alguns sucessos, decide por "chutar de vez o balde". Com isso, perde adeptos e, entre eles, os que o viam equivocadamente como um novo Spielberg. Em outros termos,o que já era contemplativo e insólito é radicalizado. O roteiro torna-se minguado, a meditação das imagens se impõe em um ambiente que, de início, parece não pertencer a ela. Há algo na relação dos personagens com os cenários, intercalando espaços interiores e exteriores em um trajeto telúrico dos seres. Desmascara-se o artifício do terror na fábula, e o suspense estaria em ficarmos presos unicamente ao inusitado das imagens.
No périplo, uma cega - a criança dos adultos-, que pode enxergar. Simbolicamente, a única a poder levar alguma possibilidade de cura para a aldeia,justamente por ser cega. Se olhos cansados ou cínicos carecem de reinjeção, por outro lado, nada aqui opera como retórica, mas silêncios, matagal e mistério. Interstícios.

No penúltimo trabalho do diretor- Fim dos Tempos- repete-se o clima de apocalipse do filme Sinais. Nota-se a incomunicabilidade, com personagens em um estado de nudez, mas que só irá até aonde tal cinema permite. O diretor, por uma vez mais, anula os álibis, e os trajetos se afirmam como unicamente provenientes de seu detido trabalho de direção,de experimentação em cinema,independente de ser ou não esse um filme de gênero. Tempos mortos,sentido raro dos ambientes e da relação dos personagens com seu entorno, normalmente ao ar livre. A meditatividade construída num espaço/tempo que caberá somente ao espectador recompor, se e quando possível.

A suposta redenção, com o encontro do casal focado à distância, sem os habituais campo/contracampo, ou sequer planos americanos reafirmam um clima de não invasão do mistério dos indivíduos e suas relações. Se a obra parece reduzir o clima de horror aparente, também não será a mesma a entregar a solução. Imagens,ao final, congeladas, que se contrapõem e se somam às imediatamente anteriores, de aparente redenção. Ambas breves no interior dos planos,dentro de uma lógica de estranhamento e profusão de signos na montagem.

A Dama na Água,o trabalho anterior, chegou a ser criticado como “filme tolo”. Afinal, o que pensar de uma história baseada em um peixe-fêmea(não o Peixe Grande, de Tim Burton, mas cabe uma analogia),a mobilizar uma narrativa? Ou um prédio, estilo condomínio fechado, filmado e fotografado em luz baça. Entrópico quanto a aldeia de A Vila, ou a família de Sinais. Alocamento de frustrações, sentimentos de perda. Pra completar, entre os moradores, um cínico crítico de cinema, atento aos clichês que pensa dominar.

Ao valorizar o processo das palavras, da dita oralidade, o filme restitui aos demais seres- e seu cinema- um estatuto, enfim, materializável. Há a interseção entre os vários apartamentos, com as palavras constituindo camadas telúricas no “cinema de histórias.” E, como tais, reconstituídas em camadas de segredo.
É um pouco assim que Shyamalan trabalha. Revira clichês, retrabalha o estatuto das imagens, instaura dúvidas em um olhar pretensamente onipotente, ou resgata a substancialidade das palavras. Por ter seguido, aos poucos, um coerente percurso de desconstrução do cinema roteirístico - seja de atuais certezas industriais, como intelectualistas-, instaurou um novo sentido de desaprendizagem/aprendizagem na representação do tempo para o cinema ocidental ou norte-americano, conduzindo o foco para o interior dos planos, tanto quanto para ambientes em construções prolongadas e silentes de espacialidade.
Contudo, nada disso negaria o aspecto de fábula desse cinema,fosse por vergonha ou pudor.Passando ao largo de uma postura meramente defensiva,o preço torna-se ainda mais alto.Melhor para a arte.

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