quarta-feira, 31 de março de 2010





Revendo uma sequência surpreendente: O Anjo Exterminador, Bonequinha de luxo e Colateral. O primeiro, entre os filmes que já mais chamaram a atenção enquanto recursos empregados da linguagem cinematográfica.

A rigor, um experimento do cineasta espanhol Luis Buñuel em torno de burgueses trancafiados em uma casa. Os cortes e a câmera vão acompanhando esses vai e vens de seres que se debatem como em uma gaiola, um pouco como Os Pássaros,de Hitchcock.


Mas se aqui há algum tipo de purgação, como no caso do filme do mestre do suspense, essa se encontraria no momento em que, por fome, os personagens chegam a sacrificar as ovelhas da dona da casa, enquanto as falas vão afirmando que ainda faltaria muito para se chegar à ovelha pura. Ou seja, para o cineasta, por mais que se tente purgá-las, as elites parecem não escapar de seu próprio eixo.


Nesse ambiente de prisão, com cada qual aliado à sua mania, soberba e chaga, podemos entrever, pela montagem e movimentação de câmera empregadas, a condução em espiral de um outro filme seu, O Alucinado,em que, se passando em um ambiente também composto por abóbadas e reentrâncias tipicamente barrocas,o protagonista, paulatina e inconscientemente, estará se devorando a si mesmo de forma crescente.Ambos filmes que se tornam mais claustrofóbicos em seu desenrolar, embora, de certa maneira, compensados pelo senso de humor do cineasta.

Obras de aparência clássica que, aos poucos, vão se revelando possuídas por um timbre espanhol nada distante da pintura de um Rembrand e,principalmente, de um Velásquez, por seu provocativo descentramento.Continuadoras de uma herança e de um estado de espírito de um barroco espanhol,mais afeito aos círculos do que às retas.
Ao acompanhar essas reentrâncias de espaço foi preciso suspender o sentido mecânico do tempo, transformando-o em um grande presente perpétuo, alucinatório, de forma que os seres não tanto recorressem a seus jogos representativos de cartas marcadas. Teríamos, agora, personagens acuados pelo instante distendido ou pelo fantasma da morte- habitualmente escamoteados pela pompa de "respeitabilidade" no cotidiano da classe.Buñuel revela-se aqui em exímio domínio de sua arte. Virtuosístico,mas sem alarde,como o Renoir de A Regra do Jogo.


Já o filme de Michael Mann cresceu. Os pontos mais altos se encontram no prólogo e no epílogo. Quando recorre mais à dramaturgia, seu filme parece menos interessante. Nas construções de atmosferas é que ganha sua força.

De início, temos a poesia urbana, com suas muitas vistas a passear por ali, entrevistas por meio do retrovisor de um carro, a refletir um grande painel metropolitano, composto tanto por uma dimensão de sonho acordado, quanto pela de isolamento, solidão e prisão na selva.

Haverá, diante disso, o espaço para um mosaico de acompanhamento musical, que vai desde a música erudita, passando pelo pop até o jazz, conforme o filme vai se desenvolvendo, com a noite se tornando madrugada e a poesia urbana se fazendo evidentemente crepuscular. Momento em que trilha e imagens remeterão a mudas reflexões.


Ao final, à medida que o filme ganha mais fôlego, Mann faz com que sua câmera busque vários tipos de ângulos a um só tempo, construindo um verdadeiro labirinto vitrificado, de concreto, em que os desencontros urbanos passam a ser projetados em um âmbito mais individualizado, nessa busca por ar ou libertação.


É preciso sempre correr mais, fugindo ou buscando, um tanto como em O Pagamento Final, de Brian De Palma,cujo desfecho se passa também em um metrô.Será possível não somente observar a relação do cinema com a música, como tornar a respiração de cada rosto decisiva em suas implicações meditativas, com o recurso digital a intensificar a condição sensorial e mesmo tátil desse cinema.
Em termos de história, saberemos que o vilão Tom Cruise foi alguém privado de sonhos, tornando-se um robô programado na selva. Já para o protagonista, trata-se de ser ou não ser sugado por essa possibilidade. Dilemas desenhados digitalmente em uma cenografia pós-moderna, na qual os riscos da alienação do desejo e da morte da consciência, nessa provação de aventura policial, se fazem enormes.


Prolongando, de certa maneira, um grande filme de De Palma, inserindo-o em um contexto metropolitano mais atual,Colateral só tende a crescer.

quarta-feira, 24 de março de 2010


Fuga para frente










Falaram em Rousseau a respeito do último trabalho de James Cameron, Avatar.O que fica nítido é que não se trata tanto desse filósofo,mas da chamada Nova Era, uma crença espiritual.
Quando ao final do filme se diz que os bons ficarão no novo planeta e os maus no velho (leia-se: a Terra), estamos diante de uma cartilha desse movimento inscrita didaticamente. Aliás, a música que prevalece é a New Age, outro indício do tipo de proposta e do estado de espírito do filme.

O diretor de ET talvez tenha sido quem lançou Hollywood de vez nesse tipo de crendice. A figuração emblemática desse filme,com o dedo do menino e de seu ícone extraterreno se tocando, seria uma clara substituição da pintura de Michelangelo sobre a criação do mundo em que o dedo do homem se encontrava com o de Deus. Teríamos dessa feita e em seu lugar, o Et, Deus da Nova Era, símbolo de um mundo pretensamente mais evoluído, enquanto à Terra caberia seus despojos.

Nesse sentido, Avatar é um herdeiro não tanto do western,ou seja,de Anthony Mann ou de John Ford, como sugeriu Inácio Araújo,mas de Steven Spielberg.

Há um momento no filme em que se tenta uma solução diplomática para a guerra, que poderia ter nascido de Fort Apache. Porém, o que contará ao final será a ênfase dada aos grandes heróis ( não tanto aos anônimos de Ford).Como também não haverá espaço para as contradições, as ambiguidades de um protagonista de Mann (Se há alguma contradição, ela estaria no fato de que, quanto mais se tenta algo mais plano, indiretamente o turvo pode comparecer).

A solução dada à diferença será bem mais ao estilo do diretor de Contatos Imediatos.
O diferente, em Avatar, seria o ser de outro planeta, não uma singularidade inscrita no hábitat mesmo dos humanos, o que tornará essa questão, pelo tipo de metáfora empregada, bem dada ao espírito evasivo do neoromantismo exotérico e em voga na Hollywood de uns bons tempos para cá.

Nesse sentido, o modesto Invictus,de Clint Eastwood, embora seja seu filme mais fraco em anos,seria mais eficiente.Um trabalho que começa muito bem e em que, aos poucos, o diretor vai perdendo a mão,sem conseguir encontrar melhores soluções para um tema que, em si mesmo, já tende ao clichê.Mas é na longuíssima passagem em câmera lenta que o diretor parece afrouxar de vez seu estilo.O problema não estaria no recurso empregado,mas na falta de parcimônia com que o utiliza,junto à qualidade frouxa dos rostos congelados.

Contudo, trata-se de um filme que usa o esporte para falar de política, como o fez o próprio Mandela. Algo mais interessante que o filme de Cameron, que para tocar em tema do tipo, preferiu o álibi de uma difusa (e melosa) espiritualidade. Não é o fato do filme se segurar em efeitos, como chegou a ser dito.( Aliás, nesse quesito, ele explora bem mais o poder de sugestão do que a intensa visibilização que se poderia esperar,o que é um claro mérito).Mas em tratar assuntos políticos de uma maneira não somente escapista,como dentro de uma fôrma da moda.

Para quem pensa que não há como ser muito diferente por se tratar, mesmo, de um blockbuster,lembremos do Planeta dos Macacos,de Tim Burton,dos trabalhos de Shyamalan,ou daquela fábula sobre a megalomania humana chamada Titanic,do mesmo Cameron.Ao contrário desses filmes, que partem de clichês para revirá-los com imaginação,inteligência e ousadia,Avatar simplesmente tende a reforçá-los com cada vez mais força em seu desenrolar, como quem simplesmente se ocupa em aplicar sua cartilha pronta.

Nesse sentido, seria uma síntese de muita coisa do cinema contemporâneo industrial médio, um refluxo dos primeiros sucessos de Spielberg e Trigueirinho não estará longe. Afinal, Avatar é, ainda que com toda a roupagem do espetáculo, mais um filme de tese do Movimento Nova Era.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Acho que me sinto velho







Muito divertido esse texto da Danuza Leão:"A Felicidade dura pouco"

"Com alguém ao lado falando num celular, lendo os e-mails, não se pode nem ao menos pensar. É a solidão total. Há muitos, muitos anos, havia uma musica de Zé Rodrix que nos emocionava. Os primeiros versos diziam "eu quero uma casa no campo, onde eu possa compor muitos rocks rurais"; e continuava dizendo coisas lindas, como "eu quero a esperança de óculos e um filho de cuca legal, eu quero plantar e colher com as mãos a pimenta e o sal". Era com isso que sonhávamos, mesmo sem saber, ou era o que gostaríamos de querer; belos tempos.Os anos passaram, e os sonhos, no lugar de se ampliarem, encolheram.O que é que se quer hoje em dia? Menos, acredite, pois querer um celular novo que faz coisas que até Deus duvida é querer pouco da vida. Meu maior sonho é bem modesto.

Nada me daria mais felicidade do que um celular que não fizesse nada, além de receber e fazer ligações. Os gênios dessa indústria ainda não perceberam que existe um imenso nicho a ser explorado: o das pessoas que, apesar de conseguirem sobreviver no mundo da tecnologia, têm uma alma simples.As duas mais dramáticas novidades trazidas pelos celular foram as odiosas maquininhas fotográficas e a impossibilidade de uma conversa a dois. Quando duas pessoas saem para jantar, é inevitável: um deles põe o celular -às vezes dois- em cima da mesa. O outro só tem uma solução: engolir, mesmo sem água, um tranquilizante tarja preta.No meio de uma conversa palpitante, o telefone toca, e a pessoa faz um gesto de "é só um minuto". Não é, claro. Vira um grande bate-papo, e não existe solidão maior do que estar ao lado de alguém que te larga -abandona, a bem dizer- para conversar com outra pessoa.

No meio de um deserto, inteiramente sós, estamos acompanhados por nossos pensamentos. Com alguém ao lado falando num celular, lendo os e-mails ou checando as mensagens, não se pode nem ao menos pensar. É a solidão total, pois nem se está só nem se está acompanhado.
Tão trágico quanto, é estar falando com alguém que tem um telefone com duas linhas; no meio do maior papo, ele diz "aguenta aí que vou atender a outra linha" e frequentemente volta e diz "te ligo já" -e aí você não pode usar seu próprio telefone, já que ele vai ligar já (e às vezes não liga). Não dá.Raros são os que atendem e dizem "estou com uma amiga, depois te ligo" -nem precisavam atender, já que o número de quem chama aparece no visor, e as pessoas têm todos eles de cor na cabeça, como eu não sei.

Eu juro que tentei, já troquei de celular três vezes, mas desisti. Recebia contas que não entendia, entrei, de idiota, num "plano", e quase enlouqueci quando quis sair. Hoje tenho um que praticamente não uso, mas é pré-pago, e só umas quatro pessoas conhecem; ponho 20 reais de crédito, se não usar não vou à falência, mas pelo menos não recebo aquelas contas falando de torpedos e SMS, coisas que prefiro nem saber que existem. Ah, e meus telefones fixos são com fio.
Do carro já me livrei: há cinco anos não procuro vaga, não faço vistoria, não pago IPVA, nem seguro, e sou louca por um táxi. Até ontem me considerava uma mulher feliz, mas sempre soube que a felicidade dura pouco: hoje ganhei um iPod. Uma quase tragédia, eu diria.

PS - Lula não resistiu e foi fazer campanha no Chile. Michelle Bachelet teve que largar o que estava fazendo para recebê-lo no aeroporto, e como se fosse pouco, ainda ouvir um discurso. Nele, Lula disse essa pérola: "graças a Deus, não houve vítimas entre os brasileiros". A presidente, com a expressão devastada pelos 800 mortos perdidos no terremoto, só fez olhar para o chão."

domingo, 14 de março de 2010

PS

A revisão de Sobre Meninos e Lobos tocou em alguns pontos problemas que já havia detectado nas demais revisões. Dessa feita, com um pouco maior de ênfase. ”Ênfase”, aliás, é a palavra.

Pode-se por aqui observar de distinto da maioria da obra do Clint uma necessidade de "maior seriedade". Desde o instante em que os garotos estão brincando na rua até o desfecho, a obra carrega consigo um certo tipo de tom solene,não estando muito distante do que seria um filme de tese.

Sobre Meninos e Lobos tende sempre ao enfático. Seja na sobreinterpretação de Sean Penn,na marca de cruz em seu corpo mostrada lentamente ao final,nas insígnias místicas dos violentadores de criança ao início.Ou na recorrência das palavras "lobos" e "vampiros" ao longo do filme.

Quem conhece a obra do diretor sabe muito bem que palavras como essas não precisam ser repetidas. Basta uma luz mais baixa ou uma figura solitária andando na rua para que ganhem um mundo de significados, de histórias.Ponto(como o diretor já dizia de Henry Fonda na cadeira em Paixão dos Fortes,de John Ford).Sobre Meninos precisa sempre buscar um discurso para acrescentar ou mesmo substituir esses detalhes.Com isso, os mesmos perdem uma boa chance de comparecer “por si”, de impor seu próprio tempo e espaço.

Nesse aspecto, Sobre Meninos estaria mais para um “metaEastwood”.O filme corre até o final preocupado com sua “profundidade” literária que, se não seria essa uma grande vocação do cinema ,do diretor, ainda menos(Densidade sim,mas com outro tipo de profundidade).

Quem parece carregar toda a culpa no filme não é a principal vítima entre os (ex)-amigos(Tim Robbins), mas sua esposa. A superinterpretação da moça beira à novela mexicana.

Mesmo com esses senões, gosto bem do filme. Tem seu vigor e a passagem em que a esposa de Penn o chama de “Rei” não perde a força no jogo demonstrativo-momento em que Eastwood retoma a figura do pai, explicitando a dimensão falida desse instituinte no mundo moderno.

Uma obra tão autoconsciente em suas operações (embora não significasse nada se não afetasse um tanto o jogo de cena e interpretativo, por vezes um tanto alheio aos pontos fortes da obra do diretor),conta,contudo,com um Kavin Bacon em versão suavizada do próprio Clint Eastwood.É ele(e não Sean Penn), quem se destaca, em seus pequenos e lacônicos olhares e expressões.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Balancete





Não que fosse gostar do cineasta Eastwood tardiamente, pela maturidade hoje mais propalada. Josey Wales,por exemplo,já era um filme encantador.

Após Um Mundo Perfeito houve uma sequência de dar inveja.Entre eles,As Pontes de Madison e o insólito Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal.Nesse ínterim, Poder Absoluto,em que o protagonista dá vida a um pai a um só tempo ausente e presente.

Sua filha o via como alguém próximo do desprezível mas, ao chegar em sua casa,dará de cara com as fotos dos eventos que,afinal, contavam a história dessa moça.O homem esteve sempre por ali,rondando,flagrando dados,em meio às sombras(ou, a despeito delas),não podendo ser notado.O fotógrafo dessas fotos é também um exímio desenhista,dando corpo novamente às formas fugidias.Pela arte,o pai estará próximo à sua filha.É sua única e real forma de comunicação.

O motivo da fotografia é o mesmo de As Pontes de Madison,assim como as cartas.São essas mediações que carregam consigo um poder mesmo de ressuscitar vidas.Por meio delas, o filhos de Maryl Streep serão reinjetados de vida nova.Mas não parece se tratar de essencialismo da arte, simplesmente.São, antes, sombras.Condição necessária para que a imagem ganhe vida no cinema,qual seja, produzindo sua própria forma.

Com Crime Verdadeiro,Clint retoma a figura durona de séculos.É nesse filme que certa proximidade com a obra de John Ford se faz valer,em certos pontos.

Temos um personagem à cinema americano,fiel em suas tarefas,levadas até o fim.
Publicamente,um obstinado em suas causas.Privadamente,péssimo pai e marido.Como se a primeira existisse para compensar a segunda,mas o que ele guarda de si mesmo são suas sombras,seus estilhaços,como o Ethan de Rastros de Ódio, igualmente um fiasco na vida familiar,vivendo a vagar por entre os ventos.
O personagem de Clint insere a questão do olhar desconfiado e somente assim conseguirá livrar um homem condenado injustamente à pena de morte. Retoma-se aqui o problema das vistas embaralhado de Um Mundo Perfeito. A imagem fantasma, a sombra sugere a “verdade”(ou a não verdade), por outro viés, que não o óbvio.Essa imagem de cinema esteve ali desde o início em meio aos estilhaços.Carrega consigo uma História de histórias:corpo ausente e presente.

Mas o que o protagonista teria a dizer ao condenado?”Não creio em seu Deus”.Claro,trata-se de um homem possuído ele mesmo por dados que somente pensa dominar.Tanto que quando se resolve a trama,nada daquilo resolverá os dilemas do “herói”:anti-herói.E muito menos será ele agraciado por quem foi salvo.Parece não ter feito mais do que a obrigação: “Que os mortos cuidem dos mortos”.

Ao final, no momento em que um fita o outro,após a cena em que uma certa inverossimilhança faz valer a ideia de milagre silencioso,em surdina(não mostrado), serão ambos sombras,cada qual à sua maneira.
Com a diferença de que um,o liberto, apresenta crenças bem definidas.O outro,Clint, encontra-se em uma posição diametralmente oposta,partindo,indo embora, pelo outro lado do enquadramento.De um lado,um homem com sua família a seguir.De outro,o protagonista consigo mesmo para carregar.É,de certa maneira,uma variante da situação final do clássico Rastros de ódio,de John Ford, dessa feita tendo o verde como fundo,em meio à noite e um jazz melancólico que cai em cena.

Esse verde é a cor do lápis pedido pela filha do pai condenado, em um momento tenso na cadeia.É a mesma cor que posteriormente comparecerá congelada em um quadro de um restaurante fino.E,finalmente,na imagem final da troca de olhares,compondo um agridoce cartão natalino: um cenário escuro-esverdeado permanecerá em cena, estaticamente,como uma bela natureza-morta, na medida em que os créditos fluem até a dissolução da imagem.

Em Menina de Ouro, o protagonista Eastwood não aceita que a moça seja uma lutadora.Mas diante do entusiasmo,da obstinação à cinema americano clássico da garota,ele renuncia.São seres novamente e diametralmente opostos:Eras e crenças diferentes...Mas como Ethan,de Rastros de ódio, faz ele valer o desejo dela por meio de sua dupla renúncia.Fazendo a menina lutar,primeiramente.Depois:precipitando seu fim..São fantasmas de mundos distintos.O mais velho a serviço do mais novo, enquanto o primeiro dilacera.

Em Gran Torino é novamente o jogo do novo com o velho que se dará,em que o segundo passará o bastão para o primeiro.Em Crime Verdadeiro, o protagonista serve como instrumento de vida, também como um pós- decadentista. Em Um Mundo Perfeito, o protagonista morre, mas não sem antes comunicar vida a uma criança.

Em outros termos, nas sombras da imagem algo é sacrificado ou renunciado para que a projeção se dê. A morte do filho de Jolie em a Troca,por exemplo, nos oferecerá uma imagem ainda mais forte dessa mulher que vaga,sem abandonar sua obstinação.
É a condição da marca na película.Morte e vida no cinema de Eastwood se intercambiam como velho e novo, cinema clássico e modernidade,vacância moderna e firmeza obstinada,renúncia e vida:Sombras,enfim, como condição de projeção.

(Depois retomamos o caso, quem sabe com Sobre Meninos e Lobos ou a respeito do mais recente Invictus,que ainda não chegou pelas plagas interioranas).

terça-feira, 9 de março de 2010





Fragmentos de um preciso texto do Ricardo Calil sobre uma obra contemporânea de peso:Encontros e Desencontros,de Sofia Coppola.

Matéria: "A Difícil simplicidade de Sofia Coppola(Pequenos Milagres Da Distância)"

Encontros e Desencontros... é como um álbum de fotos de viagem que a cineasta Sofia Coppola nos convida gentilmente a folhear.

...Mais adiante,nas fotos mais memoráveis,podemos ver Bob e Charlotte juntos:primeiro,um olhar furtivo no elevador do hotel,a conversa de apresentação no bar;uma visita a um karaokê;alguns encontros nos respectivos quartos,até o momento em que adormecem de mãos dadas.”

Depois Calil fala da desorientação diante do entorno: “sensação reforçada pela insônia que o fuso horário provoca e pela dificuldade de comunicação com os japoneses”.

“Esse deslocamento (ou trava comunicativa-termo do bloguista),estaria “impresso em quase todas as fotografias:no retrato irônico e carinhoso dos japoneses e de seu mau inglês,nas panorâmicas que revelam a conjugação esquizofrênica de passado e futuro em Tóquio.

“Bob e Charlote são os únicos personagens que conseguem estabelecer conexão ao longo do filme. É uma relação de difícil classificação: não é amizade, paixão e tampouco amor, embora tenha um pouco de cada.... O seu encontro os salvará por certo tempo de todos os outros desencontros de suas vidas. Cada momento em que eles aparecem juntos representa um pequeno milagre-tanto para os personagens quanto para os espectadores.

Encontros e Desencontros não é um álbum de fotos apenas em seu formato: pequenos episódios, entremeados por longos planos que sugerem o estado de espírito dos personagens, em vez de uma narrativa contínua.

Também o é na sua essência: a tentativa de tornar permanente o efêmero, de dar concretude à substância da memória. E, ao mesmo tempo, a consciência da impossibilidade dessa tarefa(ao falar nisso, Calil faz com que o autor desse blog se lembre de o Desprezo,de Godard).

Não dá para documentar uma epifania.Mas é preciso acreditar para recordar: “E,por isso,Encontros e Desencontros é permeado por uma nostalgia do presente.

Sofia Coppola nos consegue oferecer um filme contemporâneo (na temática da falta de conexão em um mundo hiperconectado;nos signos visuais e sonoros) e atemporal(pelo tratamento metafísico e filosófico da idéia de encontro e todos os seus significados.).É um filme absolutamente moderno,mas sem afetação de modernidade.

Não são poucas as virtudes que a filha de Francis Ford Coppola demonstra como cineasta em seu segundo longa-metragem...Sabedoria para não definir em momento algum a relação entre os protagonistas,o que banalizaria todo o filme e o engessaria em algum gênero cinematográfico.Delicadeza para transitar da hilaridade à ternura.Sensibilidade para se apropriar da estética e da linguagem dos editoriais de moda e também para criar atmosferas com a trilha sonora.Habilidade para transformar uma cidade em personagem(ajudada aqui pelo fotógrafo Lance Acord,que consegue retratar Tóquio com o olhar da insônia).Intimidade com os sentimentos dos personagens,especialmente Charlotte.

Mas os maiores méritos de Sofia talvez sejam sua intuição para o elenco e a direção de atores.Bill Murray e Scarlett Johansson não foram escolhas corretas para os papéis principais;foram iluminadas.

...Sobre Murray: “Nunca esse ator extraordinário teve tantas possibilidades de demonstrar a extensão de seu talento,nem mesmo em O Fio da Navalha(1984),de John Byron,ou Rushmore(1988),de Wes Anderson.Como Bob,ele consegue ser ao mesmo tempo impassível e expressivo,irônico e desolado.Sem falar que sua interpretação de “More than this” no karaokê é comovente.

...Depois do promissor Virgens Suicidas,que ainda era prejudicado por alguns maneirismos,Sofia Coppola se revela agora uma cineasta madura e dona de um estilo próprio.Aos 32 anos,ela consegue finalmente dissociar sua imagem da figura onipresente do pai....
Se existe algum ponto de contato entre obra de pai e filha,ele pode ser encontrado em alguns dos primeiros títulos de Francis,como Agora você é um homem(1966) e Caminhos mal traçados(1969).Pouco lembrados hoje,esses filmes também possuem a delicadeza agridoce que vem marcando a obra de Sofia."

terça-feira, 2 de março de 2010

Rodapé antes de trabalho





Já tinha muita simpatia por Clint Eastwood quando assisti ao Um Mundo Perfeito.Mas,com esse filme,parece ter havido uma reviravolta em sua obra,talvez definitiva.Seu personagem,por exemplo, está longe de ser o principal,mas é de suma importância.Esse policial durão será paulatinamente desmistificado,ou,ao menos,relativizado com força.Mas o essencial parece estar no fato de que tudo que parece ser vai se(des)constituindo como o contrário,ou quase,do que pensávamos que víamos.Essa América,seus valores,contravalores,tudo parece fora de lugar,como em um labirinto de imagens.

O problema no filme é,antes,de um tipo de cegueira.A mesma que provoca um tiro no protagonista,precipitando seu fim:tiro precipitado e,antes,cego.
O filme termina com o personagem de Clint dizendo que já não entende mais nada.Esteve envolvido sempre com a justiça,mas o que essa tal teria hoje a dizer?Qual seja,um problema de papéis.Não somente de tempo,mas de vistas embaralhadas.

Para tanto,Clint faz um mosaico de vários filmes da história norte-americana para,ao fim,questionar sua sustentação. Em alguns momentos parece emular ironicamente o Et ou o Rain Man nessa história de amizade entre um menino e seu sequestrador.

Ok.Todos são,de alguma maneira,ets nesse filme. Mas o problema de vistas embaralhadas,de valores e contravalores fora de lugar é culminado com o tiro na barriga liberado pelo menino em seu sequestrador.É algo que,àquela altura, soa como absurdo,patético.Trata-se de uma passagem longuíssima.Tudo pára.E o homem lá, sangrando no campo.Anticlímax concentrado, quase infinito.

Surge um longuíssimo diálogo entre o homem e o garoto e,ao final,saberemos que a América é esse tiro na barriga.Um organismo ferido no estômago.E que,se um organismo é algo que pressupôe uma ordem,ao menos para se ver as coisas,estamos diante de uma ausência dela(o que leva a um sério questionamento sobre o classicismo tantas vezes atribuído ao cineasta.Filiações certamente,mas classicismo...).

Uma mãe supersticiosa ou fanática,policiais trapalhões(como na cena de perseguição em que os carros se desmembram),loja de roupas que aposta em sorrisos histéricos como porta de entrada,etc..são os cacos mal colados da América,entre o seco,o tragicômico e o poético.

Com Crime Verdadeiro,Clint conquistou bem mais de minha pessoa cinéfila.

Agora veio esse Gran Torino,em que a filmagem de um organismo debilitado volta à tona(ok,Menina de Ouro também),de uma maneira em que o velho renuncia a algo, apontando para algum futuro(Em Million Dollar Baby,o treinador renuncia por duas vezes).Gran Torino é menos decadentista que Menina de Ouro,igualmente grave,mas conduzido muitas vezes com certa ar de descontração,o que não é pejorativo,pelo contrário(esse tipo de tonalidade ocorria também em Howard Hawks ou John Ford,apesar de certos pontos infundados que ocorrem ao se comparar esses cineastas).

Depois voltamos ao assunto(hora de trabalho).