sábado, 17 de outubro de 2009
Escrevi um longo comentário sobre o Annie Hall,do Woody Allen,que a Lan fez o favor de abruptamente apagar.Já que considero impossível reescrever da mesma maneira,deixo aqui a crítica de João Bénard da Costa sobre um de meus filmes favoritos:"Deus sabe quanto amei",de Vincente Minnelli.
Minnelli é um desses que precisa ser sempre retomado,apesar de sua consagração pelos (bons)críticos franceses.
Muita das vezes fica como que parecendo que fazer musicais ou melodramas seria algo "menor",menos "nobre".
Creio que assistir a pelo menos esse filme já seja suficiente para desconstruir com peso e força esses (pré)conceitos.
Ps.Ah,pelo início do texto puder ver também que não sou o único a tanto valorizar the Clock(no Brasil, O Ponteiro da Saudade),do mesmo diretor.
DEUS SABE QUANTO AMEI, Vincente Minnelli, 1958
por João Bénard da Costa
Dos melodramas de Vincente Minnelli, há dois entre os quais sempre hesito quando me pedem hierarquias de preferência: The Clock, realizado em 1945, e que em Portugal se chamou A Hora da Saudade, e Some Came Running, estreado em 1959, e que em Portugal se chamou Deus Sabe Quanto Amei.
The Clock, que já alguém comparou - e não fui eu - à Aurora de Murnau, é talvez o mais belo dos breves encontros do cinema, encontro de 24 horas entre o mais magoado dos atores dos forties - Robert Walker - e a mais magoada das atrizes de sempre - Judy Garland. A mesma velha história do soldado em licença na grande cidade, que encontra uma rapariga, ela apaixona-se por ele, ele por ela, casam à tardinha, têm uma noite e depois ele volta para a guerra. Quem sorri e diz que já viu cem vezes, é porque nunca viu The Clock, onde tudo isso acontece mas acontece como se nunca tivesse acontecido.
Mas se Deus sabe quanto amo esse filme, apesar de tudo, escolho hoje Some Came Running, até porque há hipóteses de ser ouvido por mais gente (o filme é mais conhecido e passou há pouco tempo na RTP, embora não em scope, sem o qual só por memória funciona).
Os dois filmes - para lá da marca específica de Minnelli, o homem que, como a varinha de condão, transformou em ouro tudo quanto tocou - têm em comum uma aproximável concepção do tempo e uma aproximável variação dos desígnios do destino nos limites daquele. Em The Clock (de que aqui me despeço), Judy e Bob corriam contra o título e a favor do título. A lentidão dos movimentos do ponteiro só era inevitável porque o ritmo da paixão deles o era também. Em Some Came Running, só se corre aparentemente no final, esse final alucinante, das múltiplas montagens paralelas, com Dean Martin e o assassino (Steven Peck) a tentarem ser mais velozes que os fados na busca de Shirley MacLaine e Frank Sinatra, recém-casados e engolidos pela multidão que comemora, na feira de todos os carrosséis, o centenário da cidade de província (Parkman, Indiana) onde a ação decorre. Só nessa altura descobrimos que o tempo correu todo o tempo, e que todos o perderam. A sensação que temos, quando relembramos o filme, é que houve tempo para tudo e subitamente não há tempo para nada.
Houve tempo para conhecermos a família de Dave (Frank Sinatra), com o irmão pusilânime, a cunhada sinistra e a sobrinha bonita. Houve tempo para conhecermos a professora puritana, essa Miss French (Martha Hyer) que às vezes lembra Eva Marie Saint e que usava carrapito com medo que lhe soltassem os cabelos, como Sinatra fez naquela única e incrível tarde de amor deles. Houve tempo para muitos batoteiros e muitas pegas, paisagem acidental e essencial para dela emergirem Bama (Dean Martin), o homem que nunca tirava o chapéu, e Ginny (Shirley MacLaine), a mulher que nunca largava a mala de mão em forma de coelhinho de peluche. Houve tempo, até, para uma bela e efêmera secretária, Miss Barclay (Nancy Gates), que rima com todo o resto. Só não houve tempo para o tempo do mais belo amor da mais bela mulher, Ginny-Shirley, essa que veio a correr e morreu no fim para salvar Sinatra, que lhe deitou a cabeça em cima da berrante almofada encarnada que a pedido dela lhe dera, e que era a coisa de que ela mais gostava no mundo.
“Menina e moça me levaram de casa da minha mãe. Qual fosse a causa daquela minha levada, era pequena não na soube então.” Some Came Running fez-me lembrar o começo da novela Bernardim. Quando Shirley MacLaine acorda no autocarro onde até aí não a víramos (a câmera só nos mostrara Sinatra a dormir), depois de ler o anúncio da companhia transportadora (“and leave the driving to us”) ou de ouvir o primeiro diálogo dela com Sinatra (“You’re a nice kid. I like you. Take care.”), sinto essa sensação de “levada”, um dia, menina e moça (Shirley MacLaine que o não era, era-o mais do que outra nenhuma), de “casa da minha mãe” (sempre gostei mais dessa variante do texto do que da usual, que diz “de casa de meus pais”) por causas que os pequenos nunca sabem, que faz parte de serem pequenos nunca saberem. Há, no filme de Minnelli, uma mesma dupla acentuação da inocência, a mesma saudade por um quente mundo perdido, a mesma viagem, o mesmo lento sublinhar do tempo, do “então”. E, mais importante ainda, a mesma equivalência nas cores, no décor e nos olhos de Shirley MacLaine para as labiais de Bernardim, com o corte final (a “dental”) do “então”, no movimento sublime, duma rapidez feita tanto de reflexo, como da ausência de reflexo, com que a moça menina se atira para cima do corpo de Sinatra, apanhando em cheio nas costas a bala que a ele era destinada.
Centro deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema alguma vez inventou, Ginny é menina e moça perdida na vida e perdida na morte, no sentido em que também se diz “mulher perdida”, “mulher da vida”, tão belas expressões. E no fim, no enterro dela, percebemos que, se Dean Martin nunca tirou o chapéu, foi para tirar nesse momento, para a única mulher que a esse gesto obrigava.
Metera-se, uma noite, num autocarro e atravessara centenas de quilômetros porque Sinatra, sentimental de mais quando bebia de mais, a convidou a segui-lo. Passada a bebedeira, na manhã da chegada a Parkman, ele já nem se lembrava dela. Mas lembrava-se ela e ficava, numa ida sem volta, apesar da nota de 50 dólares que Sinatra lhe metia à mão.
E ficava, atrapalhada, atrapalhante, sem perceber de que terra era, sempre com coisas a mais nas mãos (a tal carteira, a tal almofada, as flores artificiais), sempre com os penduricalhos, sempre a pintar os olhos, a pôr rimel nas pestanas, “leaving the drive to others”.
E há as duas seqüências mais inesquecíveis.
A primeira é quando decide ir à escola, conhecer a professora por quem Sinatra se apaixonara, para “tirar a limpo” aquela história. A professora ensina literatura e explica aos alunos que as bebedeiras de Poe, as drogas de Quincey, a “neurótica promiscuidade” de Baudelaire não os tornavam menores. “Eram grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas”. A campainha toca no fim desse parvo discurso. E, enquanto os estudantes saem, aparece na frente daquela mulher que sabe tudo e não percebe nada, a mulher que não sabe nada e percebe tudo. Vem nervosíssima, timidíssima,, amedrontadíssima. Se a professora gostar tanto de Sinatra quanto Sinatra gosta dela, todos os seus sonhos morrerão ali. Como ela própria diz, na profundidade de campo da aula vazia, contra um quadro onde está escrito um texto de Zola: “You don’t know how scared I was.”. “I want him to have whatever he wants. Even if it means you instead of me.” Durante toda a seqüência, não disse nem fez uma coisa feia. Só ganhou o campo-contra-campo porque a professora era incapaz de olhar para além do campo dela e ver para além das aparências a “rival” que não tinha nada, “not even a reputation”.
A segunda seqüência é pouco depois, quando Sinatra chega à casa, possesso de dor de corno, porque Miss French lhe dera com os pés (“I don’t like your life. I don’t like what you think. I don’t like the people you like.”) na ressaca desse face a face com a “pega”.
Sinatra insulta-a a despropósito. Há uma panorâmica sobre ela e ela a dizer: “You gotta remember I’m human. I’ve feelings”. Depois, Sinatra arrepende-se. Mas tudo quanto tem para dar àquela mulher que antes tinha dito que era capaz de fazer tudo, tudo quanto ele lhe pedisse (e veio a fazer mais) é perguntar-lhe: “Do you clean that place for me?” E o que a frase podia ter de horrível ou frustrante é salvo pelo sorriso de Shirley e aquele “Oh! Could I?”, como se acabasse de receber o mais belo dos presentes.
Corte e Sinatra lê-lhe o romance com que acabara de ganhar um prêmio. Sentada no chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda nele e nada no que ele diz. E, quando ele a acusa de não ter percebido uma palavra do que ouvira, ela responde com esta tirada prodigiosa: “No, I don’t. But that don’t means I don’t like the story. I don’t understand you, neither, but that don’t means I don’t like you. I love you, but I don’t understand you. What’s the matter?” Vira a cara para o lado, amuada. Há uma “pausa côncava de assombro” preenchida apenas pela espantosa partitura de Elmer Bernstein. A câmera fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumulara nele (tempo, décor, cidades, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. Segue-se a incredulidade de Shirley (“Não deves brincar com essas coisas”) e depois o abraço, abraço incrível de entrega e doação. Há o degrau e a coda volta ao início: “You gotta remember, I’m human.”
Nestas duas seqüências como na seqüência final do crime, como em todo o filme - Minnelli atinge o apogeu da sua arte. Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros. Como diria Shirley MacLaine: “Thanks, awfully, so awfully much.”
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