terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A Ficção e sua potência





Há um grande preconceito para com gêneros como o musical. Para os que se consideram cultos, ele não passaria de um escapismo. E, assim, estariam endossando a opinião de certos guias de vídeo, como os da Abril. Ou seja, nada mais inculto.

De início, os musicais em Hollywood apresentavam mesmo uma preocupação frente à crise das bolsas, junto à canhestra tentativa de conduzir o “teatro de vedetes” para o cinema que, então, descobria sua sonoridade, sem saber muito bem o que fazer com ela.

Com a assunção de Arthur Freed como produtor do gênero, as coisas mudavam de figura e, não custa dizer, de consistência. Esse homem revelara faro fino para talentos ocultos, tendo sido ferrenho defensor da menina Judy Garland em seu papel para a produção “O Mágico de Oz”. E, já como produtor, tratou de “convocar” Vincente Minnelli, entre outros, para o mundo dos estúdios cinematográficos.

De uma tacada, Minnelli recriou a estrutura dos musicais, ao fazer com que as cenas que não continham especificamente números musicais seguissem o mesmo sentido de ordenação de elementos no espaço que as demais, de canto e dança.

Contudo, o novo artista de estúdio foi mais petulante. Assimilou e explorou, no bom sentido do termo, o universo das vanguardas, ao descaradamente apostar no surrealismo para seu musical “Yolanda e o ladrão”, estrelado por Fred Astaire. Dessa forma, conferia novo sentido à ficção no cinema norte-americano, uma vez que os cenários, tratados agora como protagonistas, equivalessem aos mundos dos personagens, em seus encontros e desencontros - um pouco como o Tim Burton de hoje.

Da mesma maneira em que havia a tensão e a interpenetração entre narração e números musicais, cenários-personagens passavam a se absorver mutuamente, num contexto de encenação cinematográfica, em que a temida “perda de si” poderia até se converter em ganho.

Se a cenografia passava a ser explorada como um novo tipo de autonomia no cinema, ou seja, como espaço privilegiado dos trânsitos da ficção, “O Pirata” é, nesse caso, um "filme paradigma", emblemático.

O espaço em que habita o ator Serafin (Gene Kelly) é um não lugar. Na verdade, um entre-lugar, mas que lhe permitirá certo acesso aos limiares que conduzem de um mundo a outro, de um cenário a outro (ou outros).

Manuela (Judy Garland), de menina passiva é levada a improvisar diante do caos- em momento em que a moça aflorará do subterrâneo de si pelo fundo do plano geral- , sorrateira e determinada, a se tornar, de forma discreta e repentina, uma visionária em ação e criação. Seu lugar, de espaço restrito à moça burguesa transitará para o entre-lugar da artista. Ou seja, para o palco.

O palco em Minneli é o lugar onde que a ficção se afirma, sendo que, se o dito "mundo real da cidade" (do prefeito, da menina, das coisas programadas,etc) é exibido como delicado teatro das coisas, os cenários do diretor apresentam superfícies e mais superfícies que, assumidas como universo dos papéis e simulacros, podem encontrar, paradoxalmente, sua verdade e potência.

Todas as cenas desse filme são conduzidas em andamento de musical, mesmo quando não há número específico de canto ou dança. Afinal, o mundo é um teatro. Os discretos movimentos nos cenários existem em função dos elegantes movimentos de câmera, o que provoca certa vertigem no espectador à maneira do cinema de Alfred Hitchcock, que utilizava o mesmo tipo de recurso. E, como no caso do diretor inglês, a ficção é atravessada por um filtro rigoroso, classicista a impedir os excessos e estridências.

Um diferencial em Minnelli é que não há culpa à vista. Se em Hitchcock o universo do cinema, com suas cores, cenários, enquadramentos é organizado como movimento de seres que necessitam aceder à vida adulta, no cinema do diretor de “O Pirata” e de ” A Roda da Fortuna”, crescer equivale, antes, a olhar o mundo com olhos lavados, como os de uma criança.

Daí que ser ator, atriz, palhaço corresponda à assunção de um tipo de “artista-criança”, que poderemos encontrar também nas pinturas surrealistas de um Joan Miró. Em outros termos, para se chegar a alguma “verdade”, cabe à ficção o estado (estatuto) virginal da imagem. Não é estranho que a relação desses musicais com a enorme cultura de seu criador se apresente a um tempo como afirmação e negação. Para se fazer adulto cabe aqui desaprender.

Não como estágio de regressão, mas por meio da condução de cenários, mundos a provocar inversões e imersões de papéis em inventivo jogo de metamorfoses, experiênciado como criação, recriação e vida. O cinema de Vincente Minnelli se desenha como o elogio da ficção, do imaginário e da absorção. Do cinema, portanto, enquanto lugar do brinquedo e da “profundidade”, imbricados.

“O Pirata”, filme a um tempo barroco - teatro dentro do teatro - e clássico, ou seja, em que o delírio passa pelo crivo racional não é menos que notável.

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