quinta-feira, 18 de outubro de 2012



"...Não significa que o mundo dos musicais seja desprovido de conflitos ou de materialidade, constituído só por substratos oníricos e sensações etéreas.


Pelo contrário: o mundo é apresentado em sua materialidade e conflituosidade fundamentais. Primeiro, porque os personagens de um musical de Minnelli estão sempre confrontados a uma dada realidade concreta.

Segundo, porque o roteiro sempre se baseia num conflito entre dois universos opostos, que podem se reconciliar no final, mas que não deixam de ser opostos e, portanto, se atritar.

É como em A Roda da Fortuna, um dos melhores musicais de Minnelli (ou seja, um dos melhores musicais já feitos). O dançarino Tony Hunter (Fred Astaire) e a bailarina Gabrielle Gérard (Cyd Charisse) são escalados para estrelar um espetáculo musical que pretende ser uma versão moderna do Fausto de Goethe.

A própria formação do espetáculo consiste num conjunto de oposições: como aliar a diversão de um musical à gravidade de uma história trágica, como unir Goethe e Broadway, a “grande arte” e a arte popular?


O outro conflito do filme, talvez maior, diz respeito aos dois protagonistas: um é veterano e já passou do seu tempo áureo, a outra é jovem e está no auge da carreira; um é dançarino dos palcos populares da Broadway, a outra é bailarina clássica. Dois diferentes estilos de vida e de dança.

A Roda da Fortuna pertence a um sub-gênero do musical, o chamado “musical-espetáculo” ou “backstage musical”, cujo enredo padrão envolve os bastidores da preparação de um espetáculo, da criação de um grupo (e de sua primeira turnê) ou ainda da feitura de um filme dentro do filme.


De Melodia da Broadway a O Show Deve Continuar (Bob Fosse, 1979), são inúmeros os exemplares desse tipo de musical em que a narrativa põe em jogo as dificuldades, os percalços, o trabalho árduo necessário para montar um cenário, ensaiar uma coreografia, ajustar um movimento, encontrar o ritmo do outro, enfim, dar a luz a um espetáculo.


Esse gênero de filme tem a particularidade de evidenciar o caráter físico dos musicais, a posição circunstanciada de determinados corpos dentro de um mundo concreto no qual eles realizam movimentos singulares. Os próprios números musicais, para serem aproveitados em todo seu esplendor, devem estar associados à captação realista de pessoas se movimentando numa cenografia.

O espaço cênico pode até ser estilizado, a dramaturgia pode ressaltar o artifício, mas a habilidade do dançarino e suas evoluções no interior do quadro devem ser apreendidas pelo espectador como reais, e não como trucadas. Universo fantasioso à parte, o que o musical nos faz ver, no fim das contas, é o corpo material, o cenário concreto.


O musical, portanto, não descreve um espaço virtual, desconectado da realidade física. Ele conhece o conflito intrínseco ao encontro dos corpos, bem como a resistência do mundo material à sua transformação pelo impulso do sonho.

O espetáculo se dirige frontalmente ao espectador, sem esconder sua realidade de espetáculo.


Em Minnelli, não se trata simplesmente de aceitar ou de negar a realidade, mas de reconhecê-la como uma questão de performance, como Jacques Rancière expõe precisamente:


"A performance é sempre uma capacidade de transformação, uma maneira de embalar os gestos, de transformar o espetáculo.

Isso não implica fugir para um outro mundo.

Fala-se com frequência, e particularmente a propósito de Minnelli, de um cinema de sonho e da luta do sonho contra a realidade. A oposição não é tão clara quanto parece. […] A arte de Minnelli consiste em operar a passagem entre os regimes. Para tanto, é preciso assegurar a disponibilidade dos corpos à metamorfose."

( Luiz Carlos Oliveira)

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