segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Affonso Romano de Sant'Anna:os óculos de Drummond e a poesia




Já que encontrei o texto do Affonso a que me referi no post baixo,não dá pra privar o leitor da informação.Melhor,da formação. Quem tem olhos para ler,que leia.
E quem quiser tê-los para ver,que veja:

OS ÓCULOS DE DRUMMOND




Affonso Romano de Sant'Anna


Por sete vezes quebraram/ roubaram os óculos da estátua do poeta sentado num banco da praia de Copacabana.

Poderia, por isso, mandar para o outro mundo onde Drummond finge repousar, um e-mail contendo um "Poema dos Sete Óculos" parodiando o seu " Poema de Sete Faces". Vejam, a Prefeitura do Rio acabou de soldar o sétimo óculos ao seu rosto exposto à maresia e à cegueira dos vândalos. Cada restauração custou R$ 3 mil à Fundação Parques e Jardins, o que totaliza R$ 21 mil.

Quanto vale o olhar do poeta?

Botaram uma câmera escondida, tipo Big Brother, para flagrar o próximo atentado. Quem viver, verá.

No meu " Drummond o gauche no tempo" (agora em nova edição pela Ed. Record, comprem! é ótimo! ), tentei ver, enxergar, contemplar a questão do "olhar" na obra de Drummond. Revejo o que escrevi há mais de 40 anos. Meus irmãos e minhas irmãs e todos vós que acreditais na imortalidade da poesia, há que ver para ler.

É que a questão do "ver" nesse itabirano passa por três transformações. No princípio, como é do gosto dos mineiros, ele apenas "espia" ( "As casas espiam os homens/que correm atrás das mulheres"). Espiar é uma forma de olhar sem se comprometer. Vê, mas finge que não vê. Por isto, naquele mesmo poema diz: "Porém meu olhos/ não perguntam nada".

Depois, na medida em que penetra na complexidade do mundo, em vez de "espiar" ele "olha" e até descobre que existe em Paris uma "Rua do Olhar" ( "Uma rua- um olho/ aberto em Paris/ olha o mar,/ na praia estou eu"). Esse verso parece até prenunciar a estátua que lhe fizeram beira-mar. Ao descobrir que o mundo é maior que seu umbigo e seu olhar ele declara: "Meus olhos são pequenos para ver". É aí que ele experimenta a "náusea" de ver a complexidade histórica seu tempo.

Depois da fase do "espiar" irônico e subjetivo e do "olhar" social e histórico, chega à terceira fase: o "espiar" e o "olhar" se convertem em "contemplar". Vejam a diferença entre o não-compromisso do "espiar" o drama de quem "olha" e descobre o outro e, finalmente, a grandiosidade humilde do "contemplar" É a maturidade trazendo seu "agudo olhar". o "olhar experimentado" diante do amor e da morte. Por isto, pode até desdenhar o que a "máquina do mundo" lhe oferece.

Estão vendo como é interessante a análise estrutural de poemas?

Estão vendo aonde nos leva a depredação de um bem público?

Estão vendo o que o poeta nos leva a ver com o seu olhar?

Pessoas inteligentíssimas, seriíssimas, preparadíssimas como o filósofo Martin Heidegger dizem que o poeta nos ensina a ver, a desver e a rever. E teve um poeta -Victor Hugo, que advogando em causa própria, dizia que o poeta era capaz de ver na confusão do presente, o que o futuro nos traria. Ele acreditava na mistura de poesia e profecia.

Desconfio que Drummond nunca vislumbrou o constrangimento público porque passaria depois de morto. Pessoas culturalmente cegas estão caçando e cassando seus olhos.

Por que incomoda tanto o olhar do poeta?

Por quantas vezes sobre sua face teremos que refazer os óculos? Sete ou setenta vezes sete, como pacientemente recomendam as Escrituras?

Com óculos ou sem óculos, o poeta junto ao mar olha o novo ano que se inicia. Fogos de artifício, músicas estrondosas, desejos e rezas espargidos sobre a areia desenham um novo ano e as primícias de uma nova década.

Abram o poema "Consolo na praia" e comecem a ler:

"Vamos, não chores...

A infância está perdida

A mocidade está perdida

Mas a vida não se perdeu".



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(*) ESTADO DE MINAS/CORREIO BRAZILIENSE, O3.O1.2010

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