segunda-feira, 17 de agosto de 2009

It´s Always Fair Weather( Dançando nas nuvens)





Depois de uns dez anos pude rever Dançando nas nuvens(It`s Always Fair Weather),o último musical da dupla Gene Kelly e Stanley Donen, que fizeram juntos Um Dia em Nova York e Cantando na Chuva, ou seja, os dois maiores craques do gênero nos USA ao lado de Vincente Minnelli.
Da última vez que vi esse filme lembro que eu e o Sandro o consideramos na época melhor que o Cantando na Chuva e, interessante, hoje em 2009 permanece o melhor musical da dupla.
Normalmente não falo diretamente de roteiro, mas Betty Comdem e Adolph Green, que já haviam feito juntos roteiros sagazes como os de A Roda da Fortuna e dos outros filmes desses diretores, aqui claramente se superam. A fotografia, por sua vez, não apresenta o tom prodigiosamente celebrativo de Cantando na chuva e leva algo da meditatividade de Um Dia em Nova York ao extremo. Trata-se, sem dúvida, de cores mais esmaecidas, crepusculares.
O filme afinal, fala sobre tempo, sua passagem e desgastes na história dos três pracinhas que após a guerra em que estiveram juntos se reencontrariam dez anos depois como uma espécie de prova de que as amizades sobreviveriam. Mas, a rigor, o que ocorre nesses anos são vidas algo medíocres, e o reencontro da "turma" colocará tudo isso no pescoço deles. Haverá constrangimento, indiferença, asco, mas uma série de cirandas musicais ou narrativas forçará esses personagens, em uma espécie de frenesi em surdina, a "passarem suas vidas a limpo" e, entre outras, se tocarão que o asco que sentiam pelo outro era o sentimento que cada um nutria mesmo por si mesmo. A vida havia perdido qualquer encanto e, em meio às frustrações, era como se não fosse mais possível qualquer promessa, pois cada um havia se convertido num espelho desbotado e insípido de si mesmo.
É então que entra a genialidade da dupla de roteiristas.Como intercalar tudo isso tão dramaticamente, não comprometendo nunca o humor e, claro, o senso lúdico e poético do melhor musical? No trajeto, críticas ácidas acerca da sociedade do espetáculo vão sendo feitas a mostrar cada um como escravo de algum tipo de corrupção da vida, seja de lutas de boxe movidas a marmeladas, seja de campanhas publicitárias insidiosas do chamado "Sabão Limpa Branco", em meio ao show de horrores sentimentalóides da tv.
Em suma, o filme aborda camadas muito presentes da vida do chamado dia-a-dia como o melhor cinema americano, com uma forte presença da sátira unida a uma aguda reflexão sobre o tempo, sem em nenhum momento perder a vitalidade extrema do melhor musical.
Gene Kelly, sempre dado a maiores desafios, não se contentando em cantar na chuva, parte para um extraordinário número de patins nos dando outra obra-prima de cena, ao vitalizar "cenários chapados"(para usar uma expressão utilizada não pejorativamente por G.Deleuze para falar dos musicais da dupla).Cyd Charisse, provavelmente a maior bailarina do cinema, nos dá aqui o seu papel mais marcante como atriz em um musical devido à uma imensa sobriedade,além de dançar magnificamente com os boxeadores outra obra-prima em um estilo meio Betty Boop. As coreografias de Kelly e Donen são estonteantes:a cena que abre o filme, dos amigos dançando nas ruas com os latões de lixo é uma aula do momento lúdico no cinema em que o que está à mão(tampas de lixo, no caso), ou seja,uma "coisa qualquer" se recicla a virar poesia, ou bem revela sua outra faceta.
Kelly e Donen dirigem como mestres maiores do musical sabendo como situar e estacionar a câmera nas cenas de diálogos ou de monólogos silenciosos e meditativos, tanto quanto a hora certa de movê-la nas cenas dançadas. A crítica aqui mostra uma influência de Frank Tashlin(diretor de Jerry Lewis) quanto à ótica da sociedade do espetáculo e sua mediocridade, ou seja,é de uma acidez que só não se converte em niilismo por essa estranha vocação do musical de não se fixar em limbos destrutivos ou autodestritivos.
Será preciso no reencontro dos personagens um certo sentido de revelação nas imagens para que haja uma resignificação de mundos mostrada ao longo de um árduo e sóbrio balanço. Assim os insights vão surgindo em meio à perfeição da obra.Insights em surdina estética para os protagonistas e para os espectadores.
Betty Comdem e A. Green mostram que aquilo que estava mais latente em seus roteiros poderia se converter em algo mais maduro e que a maturidade, nesse caso, é o contrário da mumificação. Afinal, esse filme sobre quase tudo é, em última instância, um filme que dança, que mergulha na dança da vida.A luta final, que não se leva totalmente à sério, é uma aula de encenação como no melhor Minnelli, enquanto a imagem da tv, insidiosa e caquética, é obrigada na cena do programa de tv a se desdobrar em algo "em construção",em um grande painel num momento em que os programadores de tv vêem a si mesmos, num giro de metalinguagem em que o cinema os vê a todos. A máscara da imagem televisiva se torna abruptamente, nesse jogo de espelhos, sagaz máscara de humor e revelação, pondo as coisas em seu lugar, com os encontros podendo ser também possíveis. O que acaba repetindo a façanha do final de Cantando na Chuva, embora com uma densidade nova que remete a um jogo de caixas, nada devendo, nessa camada, a um Jean Renoir.
O final comporta pouquíssimas palavras que nunca dizem o essencial, deixando tudo para uma imagem que de tão sóbria, de tão noturna e crepuscular irá se dissolvendo lenta e gradativamente em profundidade de campo diante de nós, com o paradoxal vigor de uma grande despedida.
Filme proustiano, musical de primeira grandeza, jogo de paródias "em construção", melancolia e poesia extremas dentro do poder de síntese do melhor cinema americano, essa relíquia revista mesmo com a tela cortada(já que seu formato é cinemascope), se afirma como um dos melhores e mais arriscados filmes já realizados, sendo também o maior canto de cisne dos melhores musicais.

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