domingo, 30 de agosto de 2009

Vincente Minnelli( The Bandwagon)





Pode ser fácil elogiar “filmes profundos”, ou até pretensamente profundos. Já elogiar um musical pode parecer um “contra senso”, uma vez que existe aquela opinião tipo “guias de vídeo” de que se trata de um “gênero escapista”.O que certamente passa um desconhecimento da própria história do gênero.Existem aqueles musicais feitos dentro do contexto da depressão norte-americana que, com a chegada do cinema sonoro procuravam unir uma maneira de distrair a população do árduo período de intensa crise, ao levar para o cinema certos talentos do teatro.Bem, o fato é que muitos nem tinham muito talento.
A história é cheia de detalhes, mas o interessante é observar como os musicais vão ganhando gradativamente novas nuances (mesmo ideológicas), em grande parte devido ao papel de Arthur Freed, um extraordinário descobridor de talentos. Foi ele que, contrariando interesses, colocou na cabeça que Judy Garland deveria ficar para brilhar. E foi Freed enfim, quem levou Vincente Minnelli para Hollywood e é partir desse momento que os musicais passam a ser não somente mais encorpados, como também adultos enquanto arte.
Os maiores diretores no ramo ficariam sendo: primeiramente o próprio Minnelli, que se casaria posteriormente com Judy Garland, Stanley Donen (sobretudo em sua magnífica parceria com Gene Kelly) e, ainda numa terceira instância, o esteta George Stevens.
The Bandwagon, ou A Roda da Fortuna é um exemplo da mestria de Minnelli.Trata-se de um entrecho aparentemente bobo em que as imagens vão brincando, sugerindo ou apontando, como uma “séria criança”, certas camadas insuspeitas da vida. A história diz respeito a um dançarino sapateador (Fred Astaire), que num período de extrema decadência necessita, mais do que nunca, de dar sua volta por cima. É sabido que tanto Astaire quanto o próprio Minnelli atravessavam um período muito difícil em suas vidas pessoais quando da realização dessa obra.
Antes de tudo, cabe observar a primeira grande cena com Astaire no filme. Ele se encontra bem perdido em meio à sua decadência e constata que o local onde ficava o antigo teatro acabou se tornando uma espécie de “shopping da modernidade”.Diante daquele caos de pessoas e cenários, ele passa a observar os brinquedos que remetem a uma espécie de lógica do absurdo. Há a máquina com uma interrogação da qual ele, mesmo que fuçando, não consegue extrair algum sentido. Posteriormente, Astaire tira a sorte com uma boneca mecânica e muito animado recebe a sentença: “Georgeous: maravilhoso!”. Em sequência olha-se no espelho, mas o que vê não passa de uma imagem disforme. A partir daí seus passos o levam para próximo de um engraxate prostrado ao chão, desanimado como ele mesmo que se sente um derrotado tanto profissionalmente quanto pelo tempo, que é de onde surgirá seu canto.O desafio aqui será o de criar em cima desse caos moderno com a imposição desse canto e, sobretudo, através de sua dança. Os elementos passam a uma reconfiguração no espaço/cenário, a interrogação transborda como caixa de brinquedos na mesma medida em que o mundo vai sendo resignificado, inclusive aos olhos daqueles que passam.O que se vê é uma espécie de nova “Máquina do Mundo”,de Camões, que se abrirá se oferecerendo a olhares agora novos, embevecidos. Só que dessa feita se trata de uma Máquina do Mundo Cenográfica de figuras, sombras e luzes a par de certa renovação lúdica das artes, vide surrealismo, Paul Klee, Miró...
Já na cena dos bebês, o que vemos é um cenário algo surreal a indicar que uma casa se queimou com três marmanjos que se passam por trigêmeos a nos cantar que cada um deles não mais suporta ser confundido e tratado como se fosse o outro. Nessa cena aparentemente tola e “delirante” encontra-se uma presenciação genial e até delicada (por seu sombreamento) do estado de diferenciação segundo Minnelli.Trata-se daquela mesma dificuldade com certa uniformização gigantesca do mundo, que faz com que na obra Agora seremos felizes, a menina Judy Garland questiona como ficaria seu tempo de liberdade para criar e viver um mundo, uma vez que corria o risco de ser sugada pelo desencantamento metropolitano para onde seu pai havia se tranferido à trabalho, dentro da moderna lógica de produção a um tempo asséptica e massacrante.
Em A Roda da Fortuna, Astaire tem pela frente o desafio de encontrar um lugar nesse “mundo caótico modernizado” e ainda esbarrará com mais dois obstáculos. O primeiro deles é trabalhar com um diretor megalomaníaco que visa transformar o "Fausto", de Goethe em um musical, ou melhor, visa transformar o musical em uma “obra culta." O fracasso tanto artístico como de público virá, o que forçará a mais um giro dessa roda da fortuna. O outro desafio será o de dançar com uma dançarina proveniente do balé clássico que lhe impõe uma espécie de altivez artística com a qual ele não estaria habituado. Enquanto tudo isso transcorre, acompanhamos por também Betty Comdem e Adolph Green, sagazes roteiristas, os bastidores da montagem de uma peça, com todas as manifestações de insegurança e de tensão envolvidas, contornadas por uma belíssima crônica visual.
O fracasso no filme acabou se tornando o principal combustível para que houvesse uma reestruturação dessa peça, porém agora em novos moldes. O diretor culto e megalomaníaco vivido por um ator britânico acaba passando a batuta para Astaire, que se torna então uma encarnação pioneira de uma espécie de arquétipo do Imaginário no Poder(Marcuse..).Ou seja, o arquétipo do homem de grande reputação erudita cede seu espaço e poder para o homem de grande imaginário, embora o que se seguirá não será uma oposição estanque entre uma cultura e outra, mas antes uma grande permuta do popular e do erudito(Minnelli era norte-americano filho de europeus), bem sintetizada por essa associação do sapateador com a dançarina como elemento de ligadura desse imaginário que se reconstrói à toda prova.
Uma das cenas mais emblemáticas do filme se encontra na reconfiguração dessa peça quando, já no comando, Astaire canta junto ao ex-diretor algo sobre uma frustração amorosa, sem nada explicitar da história, o que oferece um pouco da chave desse formidável musical.Toda a angústia de Astaire diante de sua paixão pela bailarina, então prometida a um coreógrafo de balé clássico, comparece aqui seja a um tempo como confissão indireta, seja como sublimação estética nessa cena em que o sapateador retoma seu visual de fraque, cartola e bengala do passado em um cenário quase nostálgico. Na medida em que o número vai chegando ao fim, as bengalas vão sendo lançadas ao chão tais como muletas sendo lançadas fora num ritual de exorcismo e também de afirmação pela arte. É mais um desses grandes momentos em que o musical transfigura um estado de enorme angústia e pesar em grau elevado de arte e consciência.
Entretanto, a cena que talvez melhor ilustre esse momento de “grandes ameaças cerebrais e(ou) factuais”encontra-se na última cena do espetáculo, em que Charisse se desdobra em duas mulheres: A loura desamparada e seu duplo negro:a morena ameaçadora(ambas vivivas pela mesma Cyd Charisse).Em meio a essa brilhante paródia do filme policial em versão dançada, temos a incessante transposição de mundos/cenários em um andamento que pode ser traduzido como um labirinto em fuga. Só que, ao contrário da maioria dos "filmes noir", o significado de se perder aqui é um bocado singular. O personagem da peça encenada representado por Astaire descobrirá que a assassina, no fim das contas, havia sido a tal "loura desamparada”,enquanto a “ameaçadora morena” não passa da potência imagética encarnada do desejo do protagonista do filme,carregando consigo todo seu enigma, com essa dupla possibilidade de nela se perder ou, quem sabe, de nela se encontrar.Franqueia-se o espaço para a elaboração dos fantasmas e ansiedades amorosas,com a mesma mulher a encarnar duplas facetas em fascinantes jogos do ser e do parecer.Após decifrar a intriga policial, sua fala final é algo como “Senti que faltava alguma coisa”.Ela era má, ela era perigosa, eu confiava menos nela do que na minha sombra.Mas era o meu tipo de mulher”.
Em A Roda da Fortuna, Minnelli mostra como grandes angústias podem ser tratadas com um novo brio. Aqui elas são examinadas e transfiguradas: cenários em metamorfoses, dança e música mediando toda uma vida numa polifonia de vozes e de cenários;assim como nessa associação profissional e amorosa de Astaire com Charisse, ou seja, do popular/erudito com o erudito/ popular, do velho com o novo, em que amálgamas de ruínas de mundos trincados são as peças capitais para a reconfiguração desse tipo muito particular de Imaginário no Poder, anterior mesmo às contraculturas.

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