quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Rossellini,os profetas e a Linguagem
Foi falado aqui num breve histórico sobre Roberto Rossellini algo como "fulminação da alteridade" e logo li no blog do Júnior sobre religião algumas visões interessantíssimas sobre o divino e seus tabus.
O que se dá,por esse ângulo,no cinema de Roberto Rossellini é algo que se assemelha a uma parábola.Aliás,iria falar algo sobre o magnífico Joelho de Claire,de Eric Rohmer,do que diz respeito a esses recursos de linguagens oblíquos,quando deparei-me com esses textos.Havia acabado de transcrever,ainda que de maneira introdutória,algo sobre o cinema do mestre italiano,quando eles me caíram como luva.Ou ponto de partida para demais observações.
O que chamei de "alteridade que fulmina" no comentário abaixo sobre o cinema de Rossellini,diz respeito tanto aos protagonistas quanto aos recursos próprios à concepção de direção("e eis que o Espírito Santo será derramado sobre vós").
Longe de mim encarar a arte como forma de redenção,ou algo do tipo.Mas há rastros disso em certos artistas,da Gravidade e da Graça,como já havia falado sobre o Janela indiscreta,citando Simone Weill.
Em Rossellini,o que haveria de moderno?Uma espécie de pós-linguagem oficial de cinema,à parte de seus recursos habituais de empatia,entre outras.Uma espécie de pós-mecanismos de visibilidade entronizados,dentro do que esses despertam como sendo "verdades",ou identificações mais imediatas com ideias ou personagens,etc.
Segundo esses textos sobre religião do blog do Júnior é o que se dá justamente com os profetas nesses estados de alteridade,desse "outro" que vem tomar conta das palavras.
No caso dos profetas,o signo verbal.No caso de Rossellini,o imagético,como que não encerrado dentro dessa linguagem que é lei:linguagem oficial humana de um lado.Linguagem desse cinema e dos profetas,do outro.
Jesus,por exemplo, que inaugurou a Graça por excelência,foi morto bem menos pelos romanos do que pelos doutores da lei. Que é onde questionamos o lugar da religião como disseminação também de truísmos,de farisaísmo dos legisladores de leis mais humanas do que divinas.Afinal,foram esses religiosos que mataram o principal profeta,filho de Deus.
Para começar ele só falava por parábolas,o que era escândalo para muitos.Esse recurso sendo usado pelo fato das coisas divinas não caberem na linguagem,dentro da concepção de uma relação entre linguagem humana e lei,segundo mesmo Jacques Lacan.
Decerto existem outras leis,outras linguagens que os religiosos da época não compreendiam.Para eles,escândalo foi Jesus trabalhar no sábado ou acolher aqueles estigmatizados pelo seu povo,o judeu.
Ao quebrar as fronteiras enraizadas da linguagem,ele(Ele)era avesso aos tabus.E foi morto como homem tabu,tamanha sua alteridade,sua forma de comunicação "outra".Nem precisa ser Jesus,profeta para ser queimado como "outro"(a História assim nos mostra muito bem)em praça pública ou privada.
Estamos lidando com um mundo que não suporta ainda nada "extra",apesar do discurso oficial de pluralidade.Pluralidade desde que muito bem etiquetada em escaninhos bem definidos.
Será que esse mundo padronizado,em que os "governos de esquerda" comportam-se também como arrebanhadores administrativos,suportariam o discurso de Cristo por parábolas?Desconfio que muitos religiosos seriam os primeiros a jogar pedra.
Bem.E o que isso tem a ver com Rossellini?Como uma espécie de profeta nascido na manjedoura do cinema,ou seja,com parcos recursos,inaugura,sem autocomiserações,seu reino do cinema moderno,provocando dissensões dentro de uma concepção mais oficial de cinema,do mau ou do bom.
Quando realiza Alemanha ano zero é quase apedrejado por trair os princípios do neo-realismo.Princípios:leia-se,tabus.Claro que seu cinema interessava-se por muito mais que "mostrar".Desde o início bem mais que um ocupante da escala "social",assim como Jesus também provocava a ira dos amigos por não querer tomar o poder,grande relicário da linguagem humana enraizada.
O social em Rossellini só existia por haver a dimensão de atitude profética,ou seja,embrenhada em outras dimensões,mais escorregadias. Tanto que quando realiza Francisco é chamado de carola.No caso dos filmes com a Ingrid Bergman,um "anti neo-realista".
Se seus heróis eram mesmo possuído por visões,como dizia Gilles Deleuze,a maior dessas era a de encenação.Nesse ponto,ambos(diretor e personagens)se igualavam,pois tomados por algo que nunca coube muito bem dentro do quadro.O visível tornado invisível,como a heroína da obra-prima Europa 51,que se torna irreconhecível pelos demais:Ingrid tornada tabu pelos próprios familiares("Um profeta nunca é reconhecido em sua própria terra".Ou:"Eu vim para separar,pai e filho,marido e esposa".Todas frases de Jesus,retiradas da Bíblia).
A protagonista de Europa 51 não cabe mais na linguagem.Como que possuída por uma forma radicalmente outra de encarnação,de enraizamento no universo,ela some a nossos próprios olhos e de seus familiares,desvanescendo(Relação terra/céu).
Como a mesma Ingrid Bergman em Stromboli que,após galgar os montes para fugir da ilha,é fulminada repentinamente pela extrema alteridade que vê baixar sobre si.Novamente temos monte como terra e erosão,mas também como trânsito para o céu:lugar onde os profetas bíblicos encontravam o alter maior,Deus.
O milagre e a alteridade em Rossellini se dão nesse trânsito para "o fora da linguagem",o visível nesse trânsito para o extracampo.Extrema interioridade da Terra-terra despojando-se para os "céus".
O que é magnífico desperta certo temor de visão,não cabendo no enquadramento.Nessa arte,o cinema está sempre nesse aquém ou além da linguagem.Por isso,em O Messias,Rossellini nem se dá ao trabalho de mostrar a morte a a ressurreição do Mestre,vulgarizando-as.Totalizando-as.Basta,ao final,alguém olhando para um céu esvanescente para que parcialmente compartilhemos do milagre.Ou quando morre o menino em Alemanha ano zero,a câmera logo busca um outro ângulo,uma imagem acima a flagrar a epifania de um estado de movimento de um veículo que transporta outras pessoas.Imagem a um tempo escorregadia e paradoxalmente muito precisa.Certas ações e visões não cabem na linguagem humana ou oficial.São outros(Outros) imensos.Basta uma lépida e definitiva trepidação de um movimento interior tornando-se exterior,e vice-versa:
Terra e céu.
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