quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Oswald/ Drummond





Trechos de uma crônica de Drummond de quando da morte de Oswald de Andrade:


"Oswald de Andrade construiu toda uma filosofia de vida, e uma teoria sociológica, para justificar o exercício de sua tendência ao sarcasmo. Apelidou isso de antropofagia, e viu no homem um ser devorador por excelência, tanto mais justificado, histórica e psicologicamente, quanto mais deglute o seu semelhante:

No dia em que o homem deixar de comer o próximo, a civilização entra em decadência, e se instalariam, com o patriarcado, o messianismo, e os valores burgueses em geral. Oswald era contra a escravidão, porque esta importa em explorar o adversário, que deve ser comido, e não posto a ferros. Os devorados não contam, mas os devoradores implantarão a cultura da liberdade...


No subsolo dessa doutrina, havia apenas o gosto de Oswald pela sátira, que é a manducação simbólica. Viajando-se mais longe em sua personalidade, o ser corrosivo cede lugar, imprevistamente... a quem? A um menino sentimental, que queria ser mimado apesar de suas inconsequências, e que adorava um gesto de carinho.


Tive ocasião de surpreendê-lo (ou de surpreender-me) numa noite de abandono e confidência, em que pude verificar como geralmente sua agressividade era forma de defesa, compensação pelo agravo recebido, ou que supunha como tal.


Dessem-lhe carinho, e o homem cheio de alfinetes e ácidos se aveludava. E quando encontrou carinho, ou foi bastante lúcido para identificá-lo depois de outros que havia encontrado e não soubera decifrar, instalou-se numa felicidade burguesa e monogâmica, que negava toda a laboriosa construção antropofágica, levantada em quase trinta anos de orgulho intelectual, isto é, de autojustificação.


Uma linha de coerência se esboça através dos ziguezagues de sua vida. Ora espiritualista, ora marxista, criando um dia o Pau-Brasil e logo buscando universalizá-lo em antropofagia, primitivo e civilizado a um tempo, como observou Manuel Bandeira, solapando o edifício burguês sem renunciar à habitação em seus andares mais altos, Oswald manteve sempre intacta sua personalidade, de sorte a provocar, ainda em seus últimos dias, a irritação ou a mágoa que inspirava o "fauve" modernista de 1922.

Os rapazes que vinham para a literatura com a preocupação excessiva de purezas e aristocracias verbais (no fundo, variantes tardias do parnasianismo) pretendiam ignorá-lo ou negar-lhe a força.


(...) Não houve, no modernismo, personagem mais viva do que ele. Manteve até o fim, quando outros "heróis" do movimento se haviam acomodado ou haviam evoluído, uma atitude tipicamente modernista, não isenta de sabor.

Tinha algo de Jarry, inventor de "Ubu Roi" e do "Surmâle". E seu "Searafim Ponte Grande" é uma dessas criações que a gente não esquece, pela violência rabelaisiana de sátira, a destruir um mundo de atitudes e ideias que merece ser realmente espandongado.

Vamos sentir falta de Oswald, e também saudade."

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