sexta-feira, 17 de junho de 2011

A Obra de Arte e sua Nudez- 2








"Viver a Vida" é Jean-Luc Godard em filme de aparência mais sóbria. Uma obra de aspecto bem frontal, que pode se assemelhar a um filme de Roberto Rossellini, pela inserção radical de uma protagonista no húmus do mundo.


A rigor, trata-se, por um lado, de uma busca existencial, de uma tentativa direta de se situar no mundo. Por outra, de um cineasta, Godard, que busca formas de pintar, ou seja, de filmar sua esposa musa- Ana Karina- em vários esquetes.

Esses croquis remetem aos esboços dos contos do moderno cineasta italiano Roberto Rossellini, com a câmera à altura do olho humano, do norte-americano Howard Hawks. Muito embora, o diretor francês comece seu filme por uma longa tomada de um diálogo entre uma homem e uma mulher, situados de costas para a câmera.


Na medida em que a obra evolui, sua “pintura” da esposa Ana Karina torna-se mais próxima do que seria uma perfeição, enquanto a busca da protagonista ganharia mais sentido do que o que havia, para ela, ao início.

A prostituição, nesse caso, é menos literal do que parece. Trata-se de filmar a nudez existencial e espiritual, com direito a um breve paralelo com o filme "A Paixão de Joana D'Arc" , de Carl Dreyer, a que a moça assistirá solitária, e com empatia, em um cinema da cidade.

Se viver não é fácil, como mostra a passagem em que conversa com um filósofo sobre as dificuldades do ser, desdobradas nos papéis da linguagem e do amor, faz-se necessário, como contraste, a descontração, ainda que o próprio bate papo “profundo” já contenha em si resíduos da postura:

Em um dado momento, Ana Karina observa um conhecido realizar uma proeza cartunesca com um balão, ao mesmo tempo em que decide dançar em torno de uma mesa de sinuca com a graciosidade que lhe é inerente, como que igualmente saída de um desenho animado, a abandonar uma grave rigidez, quase mártir de si mesma.

A câmera de Godard a acompanha de esguelha e vertiginosamente, a filmar tanto a presença pelos espaços por onde perpassa- fitada por olhares compenetrados e impassíveis-, como as ausências, os pontos vazios, em um ambiente onde a indiferenciação entre seres e seres e seres e objetos se impõe em um contexto existencialista de negociatas.

Se viver não seria fácil, filmar de forma honesta requer variar os tons em surdina, mas sem comprometer o rigor, a ascese de estilo e de proposta:

Passaremos, aqui, de um registro cartunesco (Frank Tashlin, mestre de Jerry Lewis), a um espírito “documental”, de Roberto Rossellini (mestre do neorrealismo) em segundos, a também emular Robert Bresson ("Pickpocket") nos movimentos focados em mãos, a tocar e a passar objetos neutros.

E, claro, pelo protestante Carl Dreyer ( de "Ordet", e "A Paixão de Joana D'Arc") , pelo tom da "Gravidade e da Graça", em uma subtração de dados em um ambiente que se tornará, com o tempo, descarnado, a fim de atingir seu estado de nudez existencial e espiritual.


Cabe, claro, ser antes de tudo, Godard. Saber brincar, mesmo que um tanto à sério, com a linguagem- seu aparato. Reconhecê-la como artifício necessário, já que se se trata de uma pintura/filmagem, em uma operação que fulminará a obra ao final:

Por mais que a qualidade da imagem da moça musa evolua, junto a uma aproximada e possível definição de caminhos em sua vida, a imagem retornará, à maneira do primeiro diálogo, filmado de costas. Ou seja, parte-se de um artifício da arte e, como num movimento circular, volta-se a ele.


Para Godard, se não existe a imagem certa em seu plano ou moldura, a câmera se afastará em seu desfecho, o que pode configurar um gesto de pudor, por se tratar de sua esposa envolta em um achado, de certa maneira, brutal.

Ao realizar o paralelo com o conto de Edgar Allan Poe, lido segundos antes do final, o marido Godard aniquilará simbolicamente sua esposa Ana Karina, pois a obra, a esse tempo, já teria atingido seu ápice: seguido ao êxtase formal, um recuo necessário e algo extenuado, que se faz incontornável como estágio capital de se viver a vida na obra.

Se o cinema, para o diretor franco-suíço, não é uma arte de resolução de problemas conseguirá, em todo caso, evidenciar um ser em sua quase inteireza, junto às coisas que o cerceiam em um sentimento específico de entrega (em um "estar no mundo").

Nisso, como na pintura, haverá a interação com o que confecciona a obra, pincelando-a e segmentando-a, a tatear e recolher as nuances que lhe são mais caras, evidenciando, assim, a linguagem como estado de artifício formal e afetivo.

"Viver a Vida" é dos pontos mais altos da obra de Jean Luc- Godard

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