quinta-feira, 7 de julho de 2011

Formação de uma crítica- 2 / Cultura da imagem










Por conta da coerência de sua visão de mundo, a cinefilia é um instrumento poderoso de legitimação de uma arte ainda amplamente desprezada.

O exemplo emblemático desse trabalho cinéfilo continua sendo o amor pelo cinema hollywoodiano dos anos 50, tal como se exprimiu com a glorificação de seus grandes autores. Enfim, o papel da cinefilia terá sido o de legitimar esse cinema americano "clássico" ( grifo meu), vivo, ativo, tônico, excitante, extravagante, na época considerado um espetáculo de puro entretenimento, e por isso a princípio temido pelo cinema francês do pós-guerra.

Pois, paradoxalmente, a cinefilia parisiense foi buscar seus autores não no seio de um cinema francês que se pretendia abertamente "cultural", mas ali onde pouca gente, naquele momento, suspeitava de sua existência. Em 1950, embora os filmes de Howard Hawks ou Hitchcock fossem conhecidos, eles não estavam vinculados ao discurso intelectual.


A cinefilia, nesse sentido, não é um culto do amor maldito, do artista rebelde e marginal, mas antes um projeto de transferência de discurso, de captação de objeto: aplicar a cineastas que trabalham no cerne do cinema comercial um olhar e palavras anteriormente reservados aos artistas e intelectuais de renome.

Paris recebe o "espetáculo", assiste a ele e o compreende como tal, mas consegue, graças ao movimento cinéfilo, produzir "cultura", no mínimo, uma "contracultura", a partir desse material geralmente julgado trivial.

A oposição


Do outro lado está seu inimigo irredutível, o cinema francês "de qualidade", cultural e literariamente carregado de referências, que não oferece nenhum gancho a essa "contracultura" da escolha paradoxal, tampouco a seus defensores.


Devemos ver sobretudo em ação uma espécie de dandismo, digamos uma cultura de distanciamento: descobrir uma coerência intelectual ( estética- AC) ali onde ela não se evidencia, como o melhor antídoto à cultura do cinema francês, baseada, por sua vez, em roteiros e adaptações literárias.


Para definir essa cinefilia, digamos que a aprendizagem é de fato erudita, marcada por um número de visões e revisões de filmes. Nos antípodas das experiências literárias vanguardistas do referido momento ( letrismo ou nouveau roman), a escrita " superclássica" adotada pelos jovens cinéfilos eleva determinados cineastas, frequentemente norte-americanos, considerados pares dos grandes escritores franceses.

A cinefilia, entretanto, não faz senão transferir as práticas e critérios da cultura clássica ( a escola, a acumulação do saber, a mediação da escrita) para o espetáculo de cinema, então subestimado. Contribui igualmente para criar uma cultura, ressabiada tanto a respeito dos intelectuais, dos universitários, como da política.

Profissão de fé


: "Lola Montès", de Max Ophuls, é obra de gênio, "Crianças sem destino", de Delannoy, trabalho de artesão; Rossellini é genial, assim como Hitchcock e Hawks; a impostura do cinema francês deve brilhar ao ar livre...".

Cada pequeno grupo cinéfilo defende assim seus cineastas e despreza outros, estabelece classificações, listas de selecionados e reprovados, mas considera sempre Hollywood o lugar privilegiado onde esse juízo deve ser exercido, lugar que Eric Rohmer, mentor intelectual dos Cahiers du Cinéma ( os hitchcock-hawksianos"), compara ao teatro francês do século XVII e denomina a "a arte clássica do século XX."

2 comentários:

  1. " 'A' arte clássica no século XX" porque as pessoas - que vivem a ditadura do pós-fast food - ainda lêem muito pouco porque estão sempre assoberbadas e desejam ainda sanar sua fase oral deglutindo o fast food textual-imagético do cinema.

    Bons gêneros alimentícios os há e cumpre observar e citá-los. Tal e qual analisamos o código genético de nossas comidas de supermercado cabe avaliar o gen que se engendra - perdoe o trocadilho - o textual-imagético nosso cotidiano.

    Sem fazer prelúdio de uma morte anunciada ou de uma teoria da conspiração, crer que eles apontam para um fim segundo o qual - marxista citação - a sociedade dos meios de produção carrega em si mesma o gene de sua derrocada. Ora, que derrocada nossa mídia das telonas estaria tentando, dissimuladamente, anunciar?

    Inicio eu cá minha pesquisa com itens que apontam para o fim e a pressa. Quem se habilitar, seja benvindo (acerto?) e insurja e discuta comigo.

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  2. Quando Rohmer escreveu sobre essa "arte clássica" ainda havia uma necessidade de legitimar o cinema como arte. Foi uma grande luta.

    Os homem cultos do período não partilhavam desse pensamento a respeito de uma "arte" popular ou industrial. A tarefa, portanto, foi a de estabelecer parâmetros, teorias e análises que sustentassem tal posiçao. Uma "política", em suma.

    Nisso, entraria uma bela dose de provocação, claro.

    Para "pensadores comunistas" do momento, o roteiro de um filme seria mais importante do que "ler as imagens".

    A trupe de Rohmer , portanto, procurou desfocar os aspectos da tese- de um período de guerra fria- para se ater à imagem, às qualidades da direção, da organização dos elementos nessa nova tela- seu andamento, etc.

    Se vivemos em uma cultura em que a imagem é mais do que imperativa, tais noções se tornam ainda mais necessárias.

    Tanto a dimensão do letramento, quanto a do analfabetismo visual, não deveriam ser separadas ou unidas de forma categótica, equivocada. Seja erigindo hierarquias sem pé nem cabeça, seja buscando um alento em produtos culturais de cinema cheios de "filosofices", por smplesmente se venderem como "alternativos".

    Com isso, muitos perdem e perderam a oportunidade de "adentrar " esse mundo, tal como refletido por Bazin, Rohmer e outros.

    Muito há o que se conhecer do que está sendo feito, claro. Mas percebo que, sobretudo no nosso contexto brasileiro, as noções básicas desse mundo nos aparece como alhures, desprovidas de uma ausência de sua democratização. Mesmo que seja para discordar.

    Daí, a necessidade de procurar entender um pouco desse processo de reconhecimento do mundo das imagens como arte. A rigor, nem o cinema dos 50 era propriamente "clássico": Hawks continha muito de modernidade, Ray, Fuller, Minnelli e seus elementos surrealistas. E foi a partir de muito do que esses artistas fizeram que eles- Rohmer, Godard,...- criariam seu cinema francês, modernista.

    Para tanto, pimeiro se opuseram a uma crítica demasiado "ideológica", a dos "grandes temas", e se ativeram ao "pequeno".
    A oposição foi também a um tipo de cinema que parecia reivindicar seu "caldo de cultura" em adaptações literárias, ou em trabalho mais focado em roteiros.

    A História está aí, "em aberto", como esses ( bons ou maus) críticos e artistas que dialogaram e dialogam com a mesma.

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