quarta-feira, 20 de julho de 2011

A Tela, o Espectador, a Criação- 2







De meus cineastas favoritos, o iraniano e contemporâneo Abbas Kiarostami não tem sido encontrado com facilidade por essas paragens interioranas. Deixo, portanto, por aqui trechos de um belo texto do Inácio Aráujo sobre traços de uma obra instigante:



"Talvez a pergunta básica proposta pelo cinema de Abbas Kiarostami possa se formular assim: onde se forma o filme? Ele existe na cabeça que o concebe? Na realidade que a câmera apreende? Ou no olhar do espectador? A resposta, simples e complexa ao mesmo tempo, pode ser a seguinte: em todos esses lugares.


Diferentemente de Hitchcock, mas próximo de Ozu ou de Rohmer, o vazio é uma instância fundamental no cinema de Kiarostami. De início, partimos de um realismo radical: tudo o que está na tela anuncia-se como real. À medida que o filme se desenvolve, no entanto, percebemos que esse real não é monolítico. Ele comporta buracos, vazios, silêncios.

Esses vazios conformam a distância fundamental entre o diretor, a câmera e o olho do espectador. Entre o aparelho que rouba fragmentos da realidade e a cabeça que os organiza existe uma separação: uma não consegue aderir inteiramente à outra.

Entre o filme que se vê projetado na tela e o nosso olhar de espectadores, verifica-se outro hiato: por mais que nos identifiquemos com o drama que se desenrola à nossa frente, ele não é nós mesmos.

Existe uma zona vaga, que nunca se pode anular inteiramente. Ao mesmo tempo, é a fatalidade desse vazio que abre a uma esperança de comunicação.

Quanto mais se distancia do início de sua carreira, mais Kiarostami formula essa ideia das distâncias, mais seus personagens são seres em situações extremas, e somos, com isso, solicitados a compreender alguém difícil de ser compreendido.

O suicida Badii, de Gosto de Cereja é, nesse sentido, o mais radical de seus heróis, já que não faz qualquer esforço para ser compreendido e, em princípio, coloca-se nos antípodas do espectador. Trata-se, a cada momento, de optar entre a vida e a dissolução, entre a beleza e o nada.

Nesse ponto, é preciso dizer que as sugestões lançadas por Abbas Kiarostami são francamente positivas. Em meio aos atropelos, reveses e infortúnios por que se passa, é sempre possível vislumbrar a beleza - o filme pelo menos a mostra; o personagem chegar a apreendê-la é outra história.


Pode-se falar, assim, de um otimismo kiarostamiano, mais próximo de Dreyer do que dos demais citados. Mas um otimismo contido, pois prevê a limitação humana. O cineasta não é um deus. É um ser limitado. Ele pode mostrar a beleza. Não pode forçar seu personagem a vê-la ou o espectador a partilhá-la. O filme não é puro produto da ideia de um diretor. Ele é o encontro entre o cineasta, a tela e o olhar do espectador.

É um produto do encontro entre essas três instâncias, e esse é, afinal, o milagre enunciado pelo cinema de Abbas Kiarostami: a frágil possibilidade de entendimento humano a partir do vazio de cada ser, da impossibilidade de ser uma plenitude, de existir sem o outro. E para que esse entendimento possa se manifestar, é preciso que o cineasta abdique de si mesmo, de suas ideias, retorne ao estrito real. Vemos, assim, que Kiarostami não é uma novidade absoluta.

Sua originalidade, porém, é clara, inscreve-se na história de sua arte, sobre a qual reflete, e que incorpora à sua compreensão das coisas. É possível que, pelo realismo e pela maneira positiva de encarar o mundo, sua obra possa se aproximar de cineastas como Roberto Rossellini ou Jean Renoir. Mas é sobretudo entre os discípulos de Howard Hawks que Kiarostami também deve ser, afinal, incluído.

Pois, conforme a definição clássica de Jacques Rivette, caminhando, Hawks prova o movimento, respirando, Hawks prova a existência. O que é, é. Uma definição que se aplica bem ao realismo do iraniano. Mas à qual ele acrescentaria uma dúvida final: Será?"

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